De uma forma ou de outra, com uma presença mais central ou mais marginal, a Bienal Ano Zero foi sempre dedicando alguns dos seus espaços expositivos à arquitetura. É igualmente claro que a arquitetura sempre aflorou com uma presença constante, não assumida como matéria expositiva, mas antes, e de forma brilhante, como preocupação envolvente, como ambiente natural da arte que nos vem sendo apresentada. A Bienal Ano Zero sempre teve uma componente muito relevante de arquitetura, mas não nos era escarrapachada como tal, respirava-se com naturalidade, parecia que era organicamente segregada do próprio modo como a arte chegava à cidade, através do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova e de outros espaços por onde foi passando. Algumas pessoas notavam, outras não tanto, mas estávamos sempre em contacto com ela, com a arquitetura, como deveria ser sempre, de resto.
Depois de quatro edições — 2015, 2017, 2019 e 2021-22 — e de dois magníficos solos — 2020, José Pedro Croft, e 2023, Ragnar Kjartansson — a Bienal constata a certeza de um futuro incerto, um futuro ensombrado pela dúvida de poder continuar a usar o espaço que sempre usou e que assim se tornou também no espaço da sua própria identidade.
Mas foi precisamente nesta sua quinta edição que a Bienal também decidiu assumir uma programação autónoma para a arquitetura. Assim, com curadoria de Carlos Quintáns e de Zaida García-Requejo, temos já um programa de exposições, oficinas, colóquios e mesas redondas inteiramente dedicado à arquitetura e à organização do espaço. Um programa que tem como motivo central, como não podia deixar de ser, o espaço de Santa Clara-a-Nova mas que também se pretende estender a toda a cidade que de lá se pode alcançar de um modo soberbo e inigualável.
Quem visitar a Bienal neste momento, pode já ver, entre outras coisas, o resultado de um workshop orientado por alguns arquitetos e levado a cabo por estudantes de arquitetura portugueses e espanhóis. Quase todos os trabalhos se centram sobre a revelação do território interno da Cerca do Mosteiro, um espaço imenso, mas quase totalmente inexpugnável, coberto que está de silvas, de mato e de vegetação diversa que, nesta época, atinge uma altura considerável. Numa das oficinas, os estudantes e os seus orientadores calcorrearam o perímetro da cerca, passo a passo, definindo assim o caminho que depois veio a ser desmatado e se pode agora percorrer, fazendo aparecer um percurso fantástico, cheio de momentos emocionantes, vividos ora na relação próxima com o Mosteiro, ora na relação não tão próxima com a cidade que se vai revelando aqui e além. É este, de resto, um dos primeiros gestos fundadores da arquitetura, como tal apresentado por Le Corbusier há um século atrás, num célebre texto intitulado “Le chemin des ânes et le chemin des hommes” e publicado no livro Urbanisme.
Sabemos que o futuro da Bienal Ano Zero é incerto. Hotel ou bienal? Hotel e bienal? Bienal em Santa Clara-a-Nova? Sim, isso já percebemos que tem de ser. Não há nenhuma vantagem numa bienal fora do seu espaço identitário. Mas será possível, e desejável, a convivência “venturosa” entre um hotel comercialmente concessionado e uma Bienal já intensamente apropriada pela cidade, pelo país, pelo mundo?
Pensando um puco nos diversos cenários, possíveis e impossíveis, sentimos que o caminho de pé-posto construído ao longo da cerca pelos estudantes do workshop, como gesto eminentemente arquitetónico que é, pode ser considerado como o Cenário Zero da Bienal Ano Zero. Tenho a certeza que todos os leitores que, até ao final de Junho, o percorrerem sentirão o mesmo.
Mas há outros cenários, outras possibilidades, digo-o eu que sou reconhecido como pessimista agoirento. Claro está que um pessimista agoirento é quase sempre um otimista inveterado que tem de arranjar defesas contra a sua própria circunstância. É isso que eu sou.
Outro cenário possível era estudar a fundo a história do monumento, entender os seus momentos áureos e os seus períodos de decadência. Há uma ala monástica mais a poente que nunca foi construída. Tal como fez Fernando Távora no Mosteiro de Santa Marinha da Costa, em Guimarães na década de 1980, podíamos reinterpretar o “desejo” do monumento e construir essa ala simétrica, já não como mosteiro real, mas como hotel de luxo. Neste caso, estamos sempre a dialogar com o barroco, pois era assim mesmo que se faria nesse período. Para além do mais, edificado de raiz, o futuro hotel seria mais fácil de conceber, mais fluente seria também a sua construção, no relacionamento com os requisitos de sustentabilidade da tecnologia contemporânea. E, no seu devido lugar, a Bienal continuava a deixar a ala do velho mosteiro viver, sonhar e respirar. Não poderia haver cenário de maior dignidade e conveniência.
Outros cenários serão possíveis? Claro que sim, venham eles de pessimistas agoirentos, de otimistas inveterados ou dos que juntam os dois defeitos, como eu. Continuaremos a enfrentar a incerteza, mas uma coisa já é certa, depois do gesto fundacional dos estudantes do workshop, nenhum cenário será mais possível sem a presença forte, intensa e continuada do pensamento arquitetónico, isto é, nenhuma solução será possível sem uma arquitetura de grande qualidade. Essa é a condição essencial para salvar a Bienal, para salvar o Mosteiro e, já agora, para salvar o hotel.