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27-12-2023        As Beiras

Mantem-se viva e atuante a preocupação em torno da transformação da ala de recolhimento do Mosteiro Real de Santa Clara-a-Nova num Hotel de 5 estrelas. Nalgumas opiniões, a atividade hoteleira é a única via para reabilitar o monumento. Algumas dessas opiniões argumentam ainda que se deve deixar um espaço para a Anozero, Bienal de Coimbra, qualquer coisa como um pequeno apêndice do edifício que possa animar periodicamente, por assim dizer, o uso da unidade hoteleira de luxo.
Há, porém, um conjunto de circunstâncias, quer da Bienal, quer do monumento, quer do programa hoteleiro, que parecem contrariar essa possibilidade.

1. Da Bienal - A Bienal Anozero, se é que alguma vez o foi, já não é seguramente um acontecimento efémero, não é uma exposição que oferece um programa compacto e monolítico durante uns meses, de dois em dois anos, e depois desaparece. É uma programação contínua que, não descurando aquilo que se pode considerar um pico nos anos ímpares, oferece um leque intenso e diversificado de atividades culturais ao longo do tempo. Não é uma mera galeria de exposições que abre as suas portas durante uns meses e encerra logo de seguida, para regressar em força volvidos dois anos. Contudo, mais importante do que isso, é necessário lembrar que foi a Bienal redescobriu o Mosteiro, que o mostrou à cidade e ao mundo de uma forma sublime. É necessário entender que o seu irrefutável êxito não é alheio ao encanto do local. As curadorias das bienais foram sendo desenvolvidas em torno dessa venturosa associação, mas, para quem ainda duvidasse, na deste ano, a instalação das memoráveis peças do artista islandês Ragnar Kjartansson abriu um fascinante e internacionalmente reconhecido sistema de interpelações entre a arte contemporânea e o Mosteiro de Santa Clara-a-Nova.

2. Do Monumento – Por razões óbvias, os antigos conventos e mosteiros são frequentemente renovados através de programas ligados à hotelaria. É uma transferência de uso que se tem desenvolvido com alguma naturalidade, como é óbvio, e que resulta quase sempre bem. Mas, ainda assim, cada um destes monumentos tem as suas especificidades históricas, arquitetónicas e, sobretudo, culturais, e estas têm de ser escrupulosamente respeitadas pela nova intervenção. O projeto original do Mosteiro era bastante mais ambicioso, foi construída a ala de recolhimento a nascente, mas haveria uma outra, simétrica, a poente. Esse elemento, jamais construído, teria vindo dar consistência e organizar o espaço interior da cerca, o qual, descaracterizado como está e ocupado por implantações casuísticas e espúrias do tempo da ocupação militar, é hoje uma das maiores fragilidades arquitetónicas do conjunto. A existir, o projeto do futuro hotel não pode ser alheio a estas circunstâncias, tem de ser íntegro e hiperestésico para com o significado cultural da envolvente, cerca incluída.

3. Do programa hoteleiro – Não faz sentido que o novo hotel se feche numa redoma de conforto e exclusividade em relação à cidade que tem a seus pés. Os turistas que visitam Coimbra, por seu lado, não vêm para ficar encerrados numa bolha. Vêm para visitar e, se possível, viver a cidade. Vêm para interagir com ela, com a especificidade das suas atividades. O turismo urbano é uma atividade eminentemente cultural, a cidade deve estar logo à saída do hotel e deixar-se interpenetrar na sua vivência quotidiana.
Dadas estas circunstâncias, vejo aqui duas ordens de possibilidades:

- Na primeira, o investimento recorre a um projeto tipificado de uma cadeia hoteleira de luxo banal e, consequentemente, faz uma intervenção medíocre, meramente fachadista, sem qualquer alcance cultural. O monumento fica então transformado num hotel como tantos outros e só se diferencia pela vista de uma cidade distante e pela presença remota de um monumento privatizado e indesejavelmente abonecado pela intervenção. Provavelmente terá também todos os clichés dos espaços exclusivamente dedicados a este tipo de funções: piscinas, spas, restaurantes gourmets, etc., mas fica-se por aí, distancia-se da sua envolvente cultural e urbana. Nesse caso, acho que a bienal se deve justificadamente retirar de cena e deixar o gravíssimo ónus do seu desaparecimento a todos quantos foram responsáveis pela situação que se gerou.

- Na segunda, mais desejável em meu entender, os concessionários acreditam num hotel que interage com o espaço público, com a vida urbana, com a bienal, com os rituais festivos da padroeira e com todo o encanto e diversidade da cidade que palpita do outro lado do rio, que começa timidamente a palpitar na margem esquerda e, bem assim, com todo o potencial de crescimento urbano que falta ainda cumprir na colina onde o Mosteiro está implantado. Investem num projeto que entenda e reforce ainda mais todas estas riquíssimas referências culturais, um projeto que integra a cidade e a bienal, que permite que os cidadãos se aproximem do Mosteiro, obviamente sem pôr em causa o domínio privado do hotel.

Acredito sinceramente que todos os envolvidos na situação, Poder Central, Poder Local, investidores, Bienal Anozero e restantes representantes da sociedade civil se concentrem na questão e que, à volta de uma mesma mesa, vão fazer acontecer esse projeto que é, repito, um projeto eminentemente cultural. Todos, mas todos, terão a lucrar com isso. Sim, meus Senhores e minhas Senhoras, a questão do hotel de 5 estrelas no Alto de Santa Clara é uma questão eminentemente cultural. Se assim não for entendida, não deve ser tida como séria.
Por detrás de uma grande obra de arquitetura está sempre um grande projeto, sem dúvida. Mas sobretudo está sempre uma encomenda inteligente.


 
 
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José António Bandeirinha



 
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