Quando se faz análise política num espetro largo, ainda que esta se apoie em dados objetivos é sempre possível conviver com uma margem de erro. Sabe-se que todo o humano é complexo, e que no meio dos sinais e das regras que criamos ou encontramos, podemos deparar com a exceção. Além disso, tudo o que neste âmbito se comenta, ainda que fundamentado, é sempre uma aproximação. Por isso, traçar um esboço da psicossociologia da nossa extrema-direita e da repercussão que tem na vida coletiva que nos cabe, jamais significará traçar-lhe um retrato definitivo, pois este está em permanente construção. Todavia, não andará longe da abordagem aqui proposta.
Com a Revolução de Abril, e nas décadas que imediatamente se seguiram, foi voz-comum que a direita conotada com o fascismo – na sua definição ampla e de múltiplos sentidos que atravessou os últimos cem anos – teria desaparecido para sempre. Quando muito, acreditou-se que restariam uns quantos salazaristas, saudosos do passado, que a sucessão natural do tempo faria volatizar, mais uma porção mínima de tolos politicamente inconsequentes. Entretanto, a restante direita, apesar de conservadora, ia aprendendo a conviver com a democracia, respeitando as regras essenciais plasmadas na Constituição da República. Recentemente, todavia, esta situação alterou-se, com o visível reagrupamento daquele setor mais extremo.
A tendência é global e ocorre sob regimes diversos, embora contenha traços comuns. Destas destaco seis. Em primeiro lugar, como inscrito na matriz original dos fascismos, a exacerbação do nacionalismo e a sacralização das histórias nacionais a ele ligadas, o que conduz facilmente a formas de racismo, de xenofobia e também a uma atração pela violência e pela guerra. Em segundo, aqui ao contrário do passado, a inexistência de uma ideologia formal, substituída por programas básicos com ideias avulsas. Em terceiro, o recurso às estratégias do populismo, proposto por figuras que propõem erguer-se contra «os políticos» e dizem falar em nome de um vago «povo». Ele funda-se na impreparação de muitos cidadãos e recorre a necessidades justas para propor escolhas extremadas.
Em quarto lugar, o uso sistemático do embuste e da deturpação, hoje ampliado com o fácil recurso ao universo da comunicação social sensacionalista e ao território selvagem das redes sociais. Em quinto, a tendência combina o individualismo e o protecionismo económico com a desvalorização da solidariedade e do Estado social. Isto determina o menosprezo pelo próximo (pelo seu género, pela sua sexualidade, pela crença que tem ou pela origem étnica), a aceitação da desigualdade no campo dos direitos humanos e sociais e a afirmação diária da intolerância, do ódio e do supremacismo. Em sexto e último, como inovação em relação a experiências passadas desta família política, está o facto de nascer e de se desenvolver dentro de regimes democráticos, declarando mesmo aceitar as suas regras essenciais, mas utilizando-as para os destruírem.
Em Portugal a existência de grupúsculos desta natureza, em regra associados a formas de delinquência e mesmo ao mundo do crime, foi ocasional ao longo de décadas, e apenas com a emergência do Chega, em 2019, o setor ganhou alguma notoriedade e representação. Do ponto de vista sociológico, o partido detém uma natureza diversa dos anteriores, sendo a grande maioria dos seus membros cidadãos integrados, embora reconhecidos por exibirem permanente atitudes de confronto, detração e rancor. É este o primeiro grupo da extrema-direita portuguesa que não se declara formalmente contra a democracia, mas que a parasita todos os dias para tentar demolir as suas conquistas. Por isso têm os democratas o dever de o impedir.