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04-04-2023        Público [Megafone]

Há que desligar o enorme sofrimento sentido pelas pessoas autistas da sua neurodivergência. Não tinha de ser assim. O sofrimento, na grande maioria dos casos, é relacional e não intrínseco.

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Já passaram quase 30 anos desde que Jim Sinclair, nos Estados Unidos, escreveu o texto “Não chorem por nós”. Trata-se de um texto fundacional do movimento da neurodiversidade e de auto-advocacia de pessoas autistas, sobre o luto que os pais e mães fazem ao perceberem que a sua criança é autista e poderá não ser como esperam. Jim Sinclair escreve “chorem se precisarem, mas não chorem por nós”, pois estamos vivos, não estamos mortos nem raptados por algum espectro, e o que têm de enterrar é a fantasia da criança que não nasceu. Ao fazê-lo, por mais doloroso que seja, abrem as portas para se relacionarem com a criança existente, que está ali, à vossa espera.

O texto de Jim Sinclair marca o nascimento da auto-advocacia e de autistas que falam em nome próprio, em vez de terem outros a falar por eles. O texto surge numa altura em que o activismo sobre o autismo era dominado por associações de pais, que pretendiam advocar, muitas delas, investigação e uma cura para as suas crianças.

Muitas pessoas acreditaram (e ainda acreditam) que o autismo é causado por vacinas ou por causas ambientais, como o resultado de toxicidade. Hoje sabe-se cada vez mais que o autismo é simplesmente neurodiversidade — diversidade não só de cérebros e estilos cognitivos, mas de nervos e sistemas nervosos, que vão perceber e interpretar o mundo de forma diferente, como as pessoas disléxicas, dispráxicas, hiperactivas, e tantas outras.

A neurodiversidade implica o reconhecimento de diferentes formas de sentir e de pensar, diferentes sensibilidades a cheiros, estímulos visuais, auditivos, tácteis, gustativos, proprioceptivos, de movimento.

As crianças e adultos autistas vão poder ter comportamentos que vão ter dificuldade em explicar — podem esconder-se debaixo das mesas na escola, parecer obsessivas com rotinas, querer as portas sempre abertas ou sempre fechadas, ter amigos imaginários, mudar de nome, recusar-se à higiene diária, ou aderir a normas e códigos sociais.

As crianças e adultos autistas vão poder ser problemáticas — fazer perguntas e exigir respostas que vocês não estão preparados para dar. Vão poder ter pensamento rígido e recusar formas autoritárias de educação “porque eu disse que sim”. Vão poder ser intolerantes à dissonância entre agendas escondidas e discursos proclamados, ainda mais quando os problemas estão manifestamente à vista, como as alterações climáticas, desigualdades de género, raça, classe, e todo o tipo de injustiças e maus-tratos de pessoas e criaturas vivas.

Nas pessoas adultas, a exclusão é difícil ser maior. Suicídio entre pessoas que parecem “altamente funcionais”, ataques de pânico e ansiedade recorrentes, sofrimento psíquico e físico. Um estudo da Universidade de Cambridge descobriu que 10% de um grupo de pessoas que morreu de suicídio tinham traços autistas. A mesma equipa descobriu que 66% dos adultos autistas pensaram em suicidar-se, e 35% tentaram o suicídio.

Isto acontece também em crianças, sendo 28 vezes mais provável do que em crianças não-autistas. Obstáculos enormes à vida independente, e taxas de desemprego alarmantes, com estudos no Reino Unido a indicar uma taxa de empregabilidade de 29%, a mais baixa de todas as condições avaliadas.

No entanto, há que desligar o enorme sofrimento sentido pelas pessoas autistas da sua neurodivergência. Não tinha de ser assim. O sofrimento, na grande maioria dos casos, é relacional e não intrínseco. O sofrimento é social e resulta dum pressuposto de igualdade, de que todos somos iguais, que torna impossível advocar por uma linguagem não ambígua à mesa ou no trabalho, recusar comportamentos sociais que não sejam competitivos e exigir um respeito por uma sensibilidade diferente, interpretada como uma chamada de atenção ou de querer um “tratamento especial”.

Esta realidade é a realidade de muitas pessoas com necessidades de apoio tipo 1, as que não precisam de grandes acomodações num mundo não-autista, que falam e se fazem ouvir, mesmo que o que digam seja socialmente desadequado. Esta é a realidade das pessoas para quem a adaptação deveria ser fácil, sem défices cognitivos, sem quotas, cujas deficiências são completamente invisíveis.

Depois temos autistas de nível 2 e de nível 3, onde o autismo “já se nota”. No caso mais “extremo”, que necessitam de mais acomodações, temos os não-verbais, cuja comunicação é mais dificultada, ao ponto de necessitar de pessoas cuidadoras. Por pessoas cuidadoras, entenda-se muitas vezes cuidadoras informais na família, principalmente mães, e também pais. Autistas e pessoas cuidadoras vão sofrer a desadequação de todas as barreiras sociais que faltam para que possam viver uma vida plena.

As mães, muitas vezes eternas culpadas pelo desajuste das suas crianças, vão sofrer uma pressão social pela inconformidade da neurodiversidade, por vezes da parte da própria família. Mas 30 anos de auto-advocacia produzem os seus resultados. Nunca se falou tanto de autismo como agora, apesar de ainda estarmos longe da aceitação.

As pessoas autistas sempre tiveram apoio e aliados entre as pessoas não-autistas, que preferiram a sua visão de mundo, sem máscaras, mais genuína, mais autêntica. As pessoas autistas sempre tiveram pessoas que reconheceram o seu potencial e humanidade. Saber onde estão as diferenças é um pressuposto não para dividir, mas para respeitar e colaborar, não esperando o mesmo de todas as pessoas, mas aceitando o que elas têm para dar.

Infelizmente, ainda vigoram na nossa sociedade muitos preconceitos contra as pessoas autistas, a começar por usarem o nome autista como insulto no meio político, nos media, para separarem as pessoas que têm comportamento detrimental contra o resto da sociedade.

A criação de grupos de pares, que permitem às pessoas autistas sociabilizar e relacionarem-se, facilitou a muitas (nunca a todas) uma experiência de relacionamentos interpessoais que é tão natural quanto respirar, mostrando-lhes que não são assim tão inerentemente ineptas, mas diferentes, e em alguns casos, deficientes, necessitadas de apoios e acomodações que terão de lutar colectivamente para conseguir.

Num tempo onde o social é tão desprazeroso para tantas pessoas, estamos de parabéns por tudo o que conseguimos, e que ainda falta conseguir. Se não conseguem ver a nossa diferença, não chorem por nós, chorem por vós, que nós também choramos por vós, e estamos à vossa espera para carpir mágoas juntos, a fim de seguir em frente para uma sociedade verdadeiramente inclusiva.


 
 
pessoas
Rita Serra



 
temas
sociedade    autismo    neurodivergência