Ao longo de vários séculos a população da Europa viveu atormentada por uma sombra ameaçadora que os historiadores designaram «o medo do turco». Isto é, o constante receio subjetivo de uma conquista otomana que virasse o seu mundo ao contrário. Ao mesmo tempo, setores da elite cultural ocidental foram alimentando uma dimensão de fascínio por esse universo, instalado a oriente, que a maioria desconhecia tanto quanto temia. Num e noutro dos casos, o sentimento dominante era o de grande estranheza perante hábitos, crenças, valores e formas de organização política e social substancialmente diversos daqueles que, apesar da pluralidade de regimes e sociedades, eram basicamente compartilhados pela generalidade dos europeus.
O «medo do turco» emergiu com o avanço para oeste do Império Otomano e a conquista de Constantinopla, ocorrida 1453, mantendo-se essencialmente até ao início do século XIX. Em 1683, a derrota dos turcos na tentativa de conquistar Viena marcou um ponto de viragem no até ali imparável avanço turco, permitindo traçar uma fronteira relativamente segura. Todavia, ainda em 1717 uma força naval composta sobretudo por navios venezianos, malteses, portugueses e dos Estados papais foi reunida para afastar a ameaça que permanecia, vencendo a armada do sultão Ahmed III junto ao cabo Matapan, no extremo sul da Grécia. Dois grandes fatores determinaram esse medo: a consciência de uma real e persistente ameaça militar, e a hipótese de o Islão se sobrepor ao antigo complexo civilizacional de raiz cristã.
Setores da elite culta europeia foram, entretanto, desenvolvendo aquele fascínio que tendia a desvalorizar a ameaça e a fantasiar uma Turquia que na realidade mal conheciam, mas pintavam com traços de um atraente exotismo. Na sua magnífica biografia de Istambul, Orhan Pamuk aborda com muitos detalhes a tradição de escritores, filósofos, artistas ou simples viajantes europeus que, a partir dos finais do século XVIII, imaginaram a grande cidade do Bósforo e as regiões que esta controlava como um espaço fantástico. O «orientalismo», que em 1976 Edward Saïd interpretou no plano teórico, traduziu esse logro, assente na representação, a partir de uma perspetiva intensamente eurocêntrica, de aspetos de culturas situadas a leste da Europa encaradas como fonte de encantamento e desejo.
Esta perspetiva duplamente desfocada de medo e de fascínio por um «mundo-outro» pode ser comparada, ainda que em contexto bem diverso, com a relação que tem vindo a ser desenvolvida na Europa central e ocidental em relação à Rússia de Putin. O confronto em curso na Ucrânia, agravado com a invasão militar que completa agora um ano, tem vindo a aprofundar uma clivagem que tende a empurrar Moscovo para uma área extraeuropeia, por muito que a grande tradição cultural da Rússia, facilmente esquecida, tenha sido em larga medida construída em contexto europeu. É neste contexto de rutura e confronto que se situam as inaceitáveis medidas do governo ucraniano destinadas a extirpar a influência russa e a silenciar a obra de tantos criadores, mortos, como Pushkin, Dostoievski, Tchekov e Tchaikovsky, ou mesmo vivos, interpretados como implícita voz do inimigo.
A evolução do conflito nesta altura em curso, que tem distanciado poderosamente a autocracia russa e os seus aliados ou dependentes das democracias ocidentais, colocando os dois lados em estado de prontidão armada, amplia esse universo de incompreensão. Na realidade, não se trata apenas de mais uma guerra regional, pois está a deslocar dos Urais para a região de Kiev o limite físico e cultural de uma Europa das nações fundada na liberdade de expressão e no respeito pelas soberanias. Está a impor-se uma realidade ameaçadora – diversa daquela, sobretudo ideológica, que foi a da Guerra Fria –, associada a um clima de incompreensão nefasto para os povos que, de um lado e do outro da nova linha de fronteira entre Leste e Oeste, e mesmo mais além, irão olhar-se como estranhos e temer-se. Também a um clima de servidão, como lhe chama Timothy Snyder, imposto por quem determina os seus destinos.