Lembrou a comissária Ursula von der Leyen que a Europa se está a deparar com sombras de um passado que muitos julgavam extinto. Retirando os conflitos mais localizados que nos anos noventa, após o desmoronamento dos Estados do «socialismo real», tiveram lugar nos territórios da antiga Jugoslávia e do Cáucaso, há já perto de oitenta anos que o continente não assistia a uma guerra com a extensão e as consequências da que tem lugar na Ucrânia. Cidades inteiras destruídas, morticínios de civis, um povo inteiro em fuga e despojado de condições elementares de vida, ataques de artilharia pesada sem sentido aparente, impostos por uma estratégia de conquista e chantagem que utiliza uma política de terra queimada.
Ela não se limita, porém, ao território do Estado agredido. Impõe também dois fatores de extrema gravidade que afetam o equilíbrio mundial e a vida de um número indeterminado de pessoas. O primeiro consiste na oposição de dois blocos antagónicos, um constituído pelas democracias liberais e o outro por regimes centralistas e ditatoriais, que disputam a supremacia num processo de armamento generalizado em condições de provocar uma nova Guerra Fria, eventualmente menos «fria» do que a primeira. O segundo fator refere-se ao modo como o conflito está a precipitar uma crise económica e social abrupta e profunda, a uma escala europeia e global, que pode demorar longos anos a ser superada.
Apesar destes perigos, certos setores minimizam as suas consequências. Por um lado, porque reduzem o conflito ao embate entre imperialismos, estimulado pelos interesses de um deles ou de ambos, passando para segundo plano a agressão a um Estado e a um povo soberano que, na forma e na dimensão que toma, na Europa apenas tem antecedentes na Segunda Guerra Mundial. Por outro, porque para esses setores a atenção prestada ao conflito, a seu ver excessiva, tende a diluir ou a ocultar a existência de outros, igualmente impiedoso e letais, localizados noutras paragens. Como os que ocorrem na Palestina, na Síria, no Iémen, na Somália, na Colômbia, na Birmânia, no Afeganistão, no Iraque, na Etiópia, na Líbia, no Mali, em Moçambique e mais uma quinzena de outros países.
O antieuropeísmo militante desses setores utiliza este sinistro panorama global para transformar uma brutal invasão numa espécie de episódio de diversão, artificialmente exagerado pelos média e pautado por um insensível eurocentrismo, que tem como consequência fazer esquecer situações envolvendo populações desprotegidas que enfrentam tanto o desinteresse dos grandes meios de comunicação quanto a inação das organizações internacionais. Esta posição tende, porém, a descurar fatores essenciais que tornam a guerra travada na Ucrânia particularmente perigosa sob diversos aspetos.
O que se passa então com este grande conflito que o distingue, tornando-o particularmente perigoso? Algumas das razões são óbvias: a inaceitável invasão de um Estado soberano efetuada sem qualquer exigência prévia, o volume de proporções bíblicas de refugiados e o seu êxodo, a sucessão comprovada de massacres sobre civis, a destruição sistemática de cidades, aldeias e infraestruturas básicas, a recorrente ameaça do recurso a armamento nuclear, o estado de alerta dos exércitos existentes em toda a região e mesmo numa escala que a transcende, a par da enorme visibilidade conferida aos acontecimentos por estes ocorrerem no coração da Europa, na presença de grande número de jornalistas e de meios de informação de tecnologia avançada.
Acima de tudo, um violento terramoto no mapa estratégico da Europa e do mundo, recriando campos fechados e em tensão ou confronto, com práticas políticas e uma forma de entender as liberdades, os direitos e a democracia diametralmente oposta, sob uma nuvem de medo e de ameaças que não se via desde os tempos que precederam a queda do Muro de Berlim. Ninguém com menos de cinquenta anos pôde testemunhar algo parecido, e esta é uma realidade com tanto de sombrio quanto de ameaçador.