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16-03-2022        Público

Um dos primeiros artigos de opinião que publiquei nos jornais foi uma resposta às posições de Boaventura de Sousa Santos (BSS) quanto ao embargo a Cuba, ainda nos tempos de Castro (Transição de onde e para onde?, Jornal de Notícias, 24/8/2006). Enquanto Boaventura olhava o mundo do alto da sua grande teoria “emancipatória” – e, logo, virulenta e hostil aos EUA, o país que já então o acolhia como professor – eu observava aquele “enclave socialista” registando a miséria chocante dos bairros pobres de Havana e os muitos cubanos a perseguir os turistas em busca de uma porta para saírem dali. Talvez BSS concordasse com a natureza corrupta do regime de Castro, mas em última instância a culpa era do boicote imperialista à economia do país, abandonado ao seu destino após o fim da URSS.

Em relação aos mais diversos conflitos internacionais, guerras, agressões, desde a África à América Latina, passando pelo Médio Oriente, Iraque, Síria, etc, a análise política de BSS – inscrita no seu esquema teórico patriarcado-capitalismo-colonialismo – quase sempre termina com a condenação dos EUA. É importante a crítica dirigida ao poderio militar e económico americano e nesse ponto o seu ativismo como sociólogo público merece ser reconhecido e aplaudido. A leitura pós-colonialista de Boaventura é em alguns casos pertinente, mas noutros casos foi desastrosa, como na questão da destruição das estátuas de figuras ligadas ao colonialismo. Já no que diz respeito ao poder do Kremlin e às suas manobras ao serviço de movimentos e forças de extrema-direita ou quanto aos ciberataques a sistemas informáticos ou a interferência criminosa em atos eleitorais (nos EUA e na UE), não vi desse lado nenhuma inquietação. Trata-se a meu ver de uma perspetiva parcial e facciosa que favorece objetivamente o poder russo e do seu chefe supremo, Vladimir Putin, consequência de um arreigado antiamericanismo. Creio que isso ficou claro na recente polémica com Manuel Carvalho.

Sendo membro da instituição liderada por BSS (o CES-Centro de Estudos Sociais), é por dever de consciência que assumo uma posição contrária à sua no que se refere a esta guerra. E se os afetos não devem ser descartados da análise, devo assumir também as minhas ligações à Ucrânia, país que, por razões familiares, visito regularmente desde há quase duas décadas. Se um drama desta dimensão deve suscitar em qualquer humanista uma condenação sem rodeios (nem mas…), os laços afetivos não podem deixar de acrescentar revolta e indignação. Revolta contra uma injustificável invasão e as mortes dos inocentes que diariamente nos são exibidas nesta guerra em direto, mas também indignação perante posições complacentes com a agressão belicista de Putin, como é o caso da de BSS. O conhecimento de proximidade que tenho deste país permitiu-me testemunhar os muitos vestígios do regime soviético (ainda hoje bem visíveis) e provas da sua natureza opressiva, ao escutar testemunhos, memórias e vivências dos tempos de Estaline e Brejnev (veja-se A Ucrânia e o maniqueísmo ‘"neo-soviético", jornal PÚBLICO, 27/3/2014; De Kiev a Odessa na viragem do ano. jornal PÚBLICO, 7/1/2015).

A brutal invasão da Ucrânia pelo exército russo deixou a Europa e o mundo em estado de choque, mas ao mesmo tempo está a obrigar a revelar a verdadeira natureza do regime de Moscovo. A atual clique do Kremlin tem de ser vista na continuidade histórica e em linha com a ambição czarista e imperialista da Rússia ao longo dos séculos. Infelizmente, algumas correntes de opinião do campo da esquerda mostraram-se incapazes de tirar as devidas ilações da implosão da União Soviética. Não conseguem compreender o porquê de os velhos “apparatchik” se terem revertido tão rapidamente nos novos oligarcas do poder pós-soviético. A burocracia centralista e autoritária do dito “socialismo” foi na verdade uma autêntica fábrica de oligarcas, cujo aparelho se perpetuou muito para lá da vigência do próprio regime. E obviamente que o despotismo imperialista deste “senhor da guerra” não é alheio ao que se passou entre 1917 e 1989. Mas há quem não queira ver. Nuns casos por pura ignorância e burrice, noutros porque a sua retórica de diabolização do capitalismo ocidental e dos EUA tornou-os prisioneiros da sua própria narrativa. É possível que o nível de destruição e as perdas de vidas na Ucrânia ajudem alguns, bem-intencionados, a mudar de opinião, mas quem construiu a sua imagem pública assente nessa linguagem radical não pode agora perder a face.

O facto de a NATO ter sido criada como força de oposição à URSS num contexto de Guerra Fria, de profunda divisão ideológica no mundo ocidental (capitalismo versus socialismo), associado à imagem do exército soviético no pós-guerra, visto como força libertadora no confronto contra a Alemanha nazi, contribuiu para perpetuar a simpatia das “vanguardas” com a “pátria do socialismo” durante décadas. Desde a Revolução de Outubro, com Lenine e Trotsky, passando por Estaline, Krushtchov, Brejnev, etc, mesmo após a implosão do regime, muitos continuaram a ver no poder russo a força capaz de se opor aos EUA, o locus do poder hegemónico num mundo unipolar.

Não importa se muitas destas figuras são na sua vida privada consumistas e burgueses da pior espécie. Repare-se, por exemplo, nas palavras de um conhecido académico brasileiro, publicadas no Twitter logo no dia 25 de fevereiro: “Frustrados e impotentes diante da ofensiva russa, os cães raivosos do imperialismo desesperam. Pandemia e Ucrânia – anotem: iniciou-se o declínio histórico do Ocidente liberal”. Esta é sem dúvida uma leitura delirante de um ideólogo que vive ainda na ilusão de um “amanhã que canta”, que sonha com o dia em que finalmente ocorrerá uma redenção salvífica. Infelizmente não é o único. Na sua cegueira dogmática já veem nesta guerra as trombetas a anunciar o fim do capitalismo ocidental e a consequente queda do império americano.

Existem outros analistas bem mais sofisticados (académicos, militares, especialistas em estratégia, etc), mas cujo viés segue na mesma linha de orientação. Ou seja, afirmam-se “contra a invasão, MAS…”. E é nesse “mas…” que se revelam os seus equívocos. É precisamente aí que se insere BSS. Com a sua reconhecida competência sociológica, invoca a “complexidade” do mesmo modo que outros, nas televisões, invocam o esforço de “racionalidade” e a “frieza” para mostrarem as suas rebuscadas justificações ou relativizações. Porém, não há “complexidade” que disfarce a clareza de frases lapidares como o de que “o autor da invasão é a Rússia mas o seu autor remoto são os EUA”. Fazer comparações com outras ações belicistas da NATO, no passado, ou apresentar contabilidades da mortandade em várias outras latitudes que não a Europa, são de uma insensatez intolerável. Nenhuma ação bélica desta natureza pode ser relativizada, seja onde for e por quem for. A dimensão desta guerra, dada a desproporção de meios e em plena Europa, não pode deixar de nos indignar a todos. Indignar, compreendendo e contextualizando. Não é apenas um ataque à Ucrânia. É uma agressão torpe de um regime corrupto e imperialista contra a democracia e a civilização ocidental no seu conjunto.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
Boaventura de Sousa Santos    Rússia    Europa    Ucrânia    democracia    guerra