Em 1996, Gilberto Gil cantava entusiasta «Eu quero entrar na rede / Pra manter o debate / Juntar via Internet / Um grupo de tietes de Connecticut». E mais adiante: «Quero entrar na rede pra contactar / Os lares do Nepal, os bares do Gabão». Há vinte e cinco anos eram muitos, entre os otimistas e atentos à mudança, aqueles que partilhavam uma relação confiante com a Internet como ferramenta de conhecimento e informação, mas também como veículo de democracia e da luta social. Já em «Anjos Tronchos», tema agora lançado, Caetano Veloso proclama sombrio: «Agora a minha história é um denso algoritmo / Que vende venda a vendedores reais / Neurônios meus ganharam novo outro ritmo /E mais, e mais, e mais, e mais, e mais», lembrando que, «vindo desses que vivem no escuro em plena luz (…) um post vil poderá matar».
É curioso esta mutação de olhares ser testemunhada por dois dos expoentes do antigo movimento Tropicália, há largas décadas amigos e companheiros de causas. Ela exemplifica a transformação rápida e profunda que acompanhou a disseminação da Internet. Quando nos anos 90 esta se começou a expandir, uma expectativa comum – que então, confesso, também partilhei – passava pela convicção de que continha sobretudo virtualidades positivas e criadoras, tomando-se os que a rejeitavam por ignorantes, pessimistas ou temerosos do conhecimento partilhado. Foram aos milhares os livros e artigos onde se elogiavam como indicadores de um futuro próximo formas de «democracia virtual» que se anteviam capazes de levar saber e liberdade de expressão até à casa de cada pessoa ou a cada comunidade.
Existiam, todavia, sinais que alguns conseguiam ver. Em 1996, num número temático sobre a Internet da revista Manières de Voir, Eduardo Galeano considerou, ainda que sem os rejeitar, os novos meios eletrónicos como podendo ser capitalizados «ao serviço da incomunicação humana», impondo uma adoração unânime e acrítica do modelo de sociedade neoliberal. Tudo era ainda nebuloso porque iria estar – escrevi isto em Rumo ao Cibermundo?, um livro coletivo editado no ano 2000 – «nas mãos das pessoas, que agem, como sempre, de maneira incerta», permitindo ou não que a utopia se transforme em distopia. Estou hoje em crer que tanto os entusiastas quanto os céticos estavam cobertos de razão.
O presente confirma-o. Apesar de socialmente desequilibrada, ocorreu uma democratização dos meios eletrónicos: o número de pessoas com acesso à Internet, e que dela se servem diariamente recorrendo sobretudo às redes sociais, ampliou-se de forma exponencial, tornando cada vez mais fácil, ao nível da produção e do acolhimento, a disseminação da palavra individual e dos projetos coletivos. Todavia, esta explosão trouxe também consigo a possibilidade de tudo poder ser dito, transmitido e publicamente exposto, sem que instrumentos capazes de impedir a mentira e a manipulação – nomeadamente as impostas pelas ditaduras, pelos interesses das grandes empresas, por grupos radicalizados e pelos populismos, ou até pelo mundo do crime – acompanhem a informação oferecida.
No eixo do dilema está a regulação. Em sociedades hipercomunicantes, onde «online» e «offline» se confundem, são indispensáveis regras que protejam uma comunicação capaz de aproximar, mas combatam a que instala a violência e o caos. Elas não podem ser as da censura ou as da opressão do mais forte, mas as da responsabilização. No fundo, a transposição, para um espaço agora intermediado por máquinas, dos preceitos do diálogo e do respeito pelo próximo que, apoiadas no direito, as sociedades humanas têm produzido. Se tudo isto for feito de forma equilibrada, tanto o entusiasmo de Gil como a opressão apontada por Caetano encontrarão as justas respostas. Até porque, como, agora mais confiante, este declara na mesma canção, hoje «há poemas como jamais / ou como algum poeta sonhou». Serão sempre eles a salvar-nos.