Salvo se formos bastante distraídos, todos algumas vez lemos ou escutámos a conhecida afirmação do filósofo espanhol José Ortega Y Gasset onde este declara «eu sou eu e as minhas circunstâncias». Ela traduz, de um modo ao mesmo tempo simples e complexo, uma atitude de profunda compreensão perante a complexidade, e ao mesmo tempo a falibilidade, do comportamento de cada homem ou mulher. Exprime de igual modo uma perceção – apenas possível após séculos de reflexão e de resistência, projetados como alicerces de uma democracia plena contra o poder da intolerância – da conquista humana do direito à identidade pessoal, à capacidade individual de transformação e à faculdade de redenção de cada sujeito. Enfrentando esta sempre quem julga dominar a definitiva certeza.
Seria aliciante traçar aqui, ainda que em forma de síntese, a extensa e heroica história desse combate e dos seus numerosos intérpretes. Alguns, como os pensadores humanistas, emergindo como faróis de um longo passado de trevas, quando o direito a pensar de forma própria, e igualmente a hipótese de infletir trajetos, eram encarados como crime gravíssimo pelos defensores da autoridade incontestada e da ortodoxia. O fim triste e desamparado de Damião de Góis, o amigo de Erasmo, figura outrora admirada por toda a Europa, mas caída em desgraça pela ação persecutória da Inquisição, representa, entre nós, um exemplo desse lastro de ódio lançado contra a possibilidade de cada ser humano pensar por si e seguir o caminho que escolher.
Mas foi principalmente o pensamento de matriz libertária, que mais diretamente influenciou a dimensão utópica inscrita nas Revoluções Americana e Francesa, e após estas os grandes movimentos sociais, culturais e artísticos do século XIX, a dar o mote dessa valorização da liberdade de escolha como princípio central da integração do indivíduo capaz de pensar por si próprio nas sociedades complexas. A obra «A Idade da Razão», publicada em 1793 por Thomas Paine, foi uma das que serviu como libelo em favor dessa possibilidade, influenciando por muitas décadas a valorização do uso da razão como instrumento de autonomia e criatividade.
A emergência da figura do intelectual como um resistente perante a tirania, e como um pensador que concebia os seus pontos de vista como alimento do debate público, ampliou ainda essa abertura à importância fulcral da divergência, da diferença e mesmo da dissidência. Quando, em Huis Clos, a peça de 1944, Sartre fez a personagem Garcin declarar que «o inferno são os outros», expressava que toda a forma de pensamento individual enfrenta coações impostas pela sociedade. Mas em artigo publicado pouco depois Albert Camus deu a volta a essa ideia, assinalando que «a liberdade consiste acima de tudo em não mentir» e fazendo de todo aquele que seguisse este princípio um seguidor ativo do equilíbrio entre a convicção e a ação, jamais se acomodando a uma existência inalterável.
A frase de Ortega que abre esta crónica contraria outra, mais curta, que na forma de juízo inapelável tende a caraterizar a personalidade de alguém: ele (ou ela) «é o que é», escuta-se um grande número de vezes, traduzindo a frase a ideia de que aquela pessoa se encontra para sempre excluída da hipótese de rever as suas certezas, as suas ações e o seu destino. Por estes dias de constante e irresponsável crucifixão sem julgamento, nos meios de comunicação e nas redes sociais, de tantos homens e mulheres, culpando-os, sem direito a contraditório, do que no passado real ou supostamente terão feito ou pensado, a noção da possibilidade humana de uma revisão das escolhas seguindo as circunstâncias retorna como imperativo a defender.