A máscara é um artefacto civilizacional que, em diferentes lugares e em diferentes momentos da história, tem preenchido várias funções sociais. Enquanto instrumento de disfarce ou de proteção, a máscara esconde o rosto, funcionando também como apetrecho que permite representar um ser diferente daquele que a usa. Nesta sua essência performativa, a máscara é um dispositivo de inversão dos papéis e dos constrangimentos sociais. Com ela nos tornamos um outro. Mas no uso funcional, compulsivo e generalizado, que a Humanidade dela faz em momento de crise pandémica, a máscara cria uma aparente situação de igualdade e reforça o sentido de um destino comum. Com ela nos tornamos um mesmo. Na sua polissemia, a máscara nunca mentiu tanto quanto mente nesta sociedade sem rosto.
A sociedade mascarada, sem rosto, pode ser vista como uma alegoria da crise de identidade do humano. Uma identidade que foi moldada pela modernidade e que impôs o humanismo como compromisso ético para a sublimação da Humanidade, em que o humano se torna a medida das coisas. Essa crise de identidade não se traduz apenas no incumprimento dos direitos humanos e de outras promessas da modernidade. Ela resulta, por um lado, da balcanização do humano enquanto coletivo e traduz-se na proliferação de identidades fragmentadas e fluidas. E, por outro lado, do alargamento da conceção do humano, que se estende ao mundo animal, à natureza e a um universo tecnificado e hibridizado, que nos lança para a realidade do pós-humano.
A expressão «rosto humano» é, aliás, recorrentemente usada como aferidor da capacidade de humanização, inclusive daquilo que não é humano. Aplica-se ao capitalismo, à tecnologia, às máquinas, às formas de governação e a tudo aquilo que enquadra os desafios civilizacionais contemporâneos. Pedir-se a estes mecanismos reguladores que tenham um «rosto humano» significa, ao mesmo tempo, exigir respeito pela identidade individual e coletiva dos seres humanos, mas também reconhecer que esses mecanismos funcionam crescentemente como instrumentos de desumanização, de degradação e de desrespeito pela dignidade humana. Na visão pessimista de Bernard-Henri Lévy, convivemos com uma «barbárie [também ela] de rosto humano», na qual «a vida é uma causa perdida e o homem um Deus falhado».
Se virmos na barbárie de Lévy uma hipérbole que amplia fenómenos de desumanização (a pobreza extrema e a exclusão social; a escravidão e a exploração laboral; as violências e as formas de violação, entre tantas outras), somos obrigados a reconhecer que as instituições totais de Goffman se multiplicam atualmente nas nossas vidas. Instituições que nos convertem em «reclusos», que se apropriam de todo o nosso tempo e que controlam os mais ínfimos pormenores das nossas vidas. A casa que nos confina, mas que nos expõe à vigilância, a implosão do local e do tempo de trabalho, ou o barco errante do Mediterrâneo que procura um porto de abrigo para despojados de humanidade, são expressões concretas de instituições totais que reificam um humanitarismo minimalista contentado, hoje, com pouco mais do que salvar o corpo e a existência. Instituições que dão corpo e forma ao que Harold Garfinkel designava por cerimónias de degradação; ou seja, processos que, mais ou menos intencionalmente, reduzem o estatuto social de uma pessoa dentro de um determinado grupo ou mesmo na sociedade em geral, com o objetivo de diminuir ou até mesmo punir essa pessoa.
Sitiada por populismos, extremismos, formas predadoras e híper competitivas de organização económica, pela catástrofe ecológica à escala planetária, a Humanidade enfrenta uma responsabilidade ética e um desafio coletivo vitais: mudar a condição social de existência por via de uma transformação radical dos modos de vida. Isso implica, em primeiro lugar, questionar os pequenos gestos do dia-a-dia. Implica potenciar o que a sociologia designa por acontecimentos biográficos (por exemplo: chegar a uma certa idade, mudar o local de residência, constituir uma família, encontrar um novo emprego) para mudar diametralmente de hábitos. Os pequenos gestos lembram-nos de que, perante a incomensurabilidade dos desafios globais, individualmente não vamos a lado nenhum. Mas sem a consciência da importância dos pequenos gestos perdemos o sentido do humano, o sentimento de pertença à Humanidade e a noção da responsabilidade em contribuir ativamente para preservar a nossa casa comum. Não sendo suficientes, são necessários para nos lembrar o nosso estatuto de grão de areia de uma engrenagem da qual depende o equilíbrio ecológico que nos coloca perante o dilema de serem cada vez mais aqueles que têm de lutar para «apenas salvar o corpo».
Sem os pequenos gestos orientados para a mudança da nossa atual condição de existência, legitimamos cerimónias de degradação que, pela exclusão e pela desumanização, permitem a alguns um humanitarismo maximalista que multiplica e estende experiências de sofrimento. Reconhecer (e exigir ser reconhecido pelo) o outro como um igual, não totalmente igual, mas mais igual do que diferente, constitui o nível mínimo de gestão do nosso quotidiano. Porque os pequenos gestos encerram o potencial de dar um rosto humano a uma sociedade desfigurada.