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25-07-2020        As Beiras

O que se designa por panfleto, conceito vulgarizado sobretudo a partir da Guerra Civil Inglesa do século XVII, pode ter diferentes formas. Da página solta ao folheto simples ou desdobrável, do artigo de jornal ao livro, de um certo padrão de discurso público a algumas formas de intervenção artística, possuem em comum participarem na divulgação, de uma forma sempre muito acessível e direta, de opiniões ou de informações destinadas a afetar escolhas coletivas. Os grandes processos de transformação política requerem a intervenção deste instrumento, dado serem as ideias claras e precisas que tomam a sua forma a determiná-los, não os tratados políticos ou filosóficos, que quanto muito os podem influenciar lateralmente. É, pois, na simplicidade que evidenciam que reside a força que detêm, embora seja também nela que podemos encontrar a sua fragilidade e a hipótese da sua perversão.

Não sei se serei pior autor de panfletos que seu leitor. A primeira vez que escrevi um foi em 1971, quando uma organização estudantil de oposição ao regime a que pertenci me incumbiu de redigir alguns comunicados. Apenas escrevi dois, pois logo ao segundo, de maior responsabilidade, os meus companheiros de combate consideraram eu não replicar quanto o desejavam as frases feitas e, em vez de escrever slogans lineares e diretamente apelativos, me punha a alinhar vocábulos segundo a minha própria vontade e inspiração, complicando em vez de simplificar. Houve uma segunda tentativa, quando algum tempo depois vivi como militante clandestino e era um dos responsáveis por escrever e «bater à máquina» boletins de diversos organismos e comités. Também não durou muito pelo mesmo motivo, tendo eu mesmo concluído não ter vocação para aquela escrita decalcada, previsível e pobre.

Como leitor, desgosta-me também o panfleto, dado a sua linguagem não elevar a consciência, não estimular a capacidade crítica, não desenvolver argumentos, limitando-se a procurar condicionar a resposta imediata, quase automática, de quem o lê ou escuta. Por esse motivo, o seu ramerrão tantas vezes instiga sentimentos combinados de tédio ou mesmo de aversão por parte de quem exige algo mais. Compreende-se, todavia, a sua utilidade, particularmente em momentos de combate político e social mais agudo, em situações revolucionárias ou em espaços de resistência, nos quais, como nos teatros de guerra, é necessário mobilizar pessoas para, sem hesitações, apoiarem certas escolhas, medidas ou iniciativas. Por este motivo, a linguagem partidária, ou um certo padrão de ativismo, tanto recorrem à retórica panfletária, presente até, não apenas em manifestos destinados a uma ação direta, mas também em programas eleitorais extensos. Ainda que, pela sua especificidade, estes merecessem maior cuidado e desenvolvimento, sugerindo uma perspetiva da realidade mais densa e complexa, e não meramente imediatista.

Um problema que este género discursivo levanta, e por isso me sirvo dele como tema desta crónica, reside no facto de, de tanto escreverem textos panfletários devido ao seu compromisso político diário, muitos militantes e ativistas, como bastantes personalidades cuja intervenção alimenta nos jornais ou na televisão a opinião pública, acabam por deixar de o saber fazer de outro modo. Acabam por perder a mão para uma escrita mais pessoal e sedutora, bem como a capacidade para produzir uma retórica que não se rebaixe constantemente ao menor denominador comum das pessoas às quais se procura dirigir. Assim abdicam de ampliar os debates, contribuindo, como lhes deveria competir, para ajudar a desenvolver o grau de consciência dos seus interlocutores e do seu público. De tanto se treinarem apenas nas mensagens simples e diretas, de tanto discorrerem de modo previsível, sujeitos às prioridades da linguagem panfletária, tornam-se meras caixas de eco, sem rasgo, beleza ou criatividade. Perdendo até a capacidade para falar ao ouvido e à consciência crítica de quem exige mais que frases feitas e propostas sem surpresa, acabando por tombar na banalidade.


 
 
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Rui Bebiano



 
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