Li há dias um artigo da jornalista Teresa de Sousa onde se condenavam as movimentações de protesto, a decorrer sobretudo nas Américas e na Europa, que têm envolvido marcas monumentais evocadoras do racismo, do esclavagismo e do colonialismo. Já escrevi sobre o tema, que contém aspetos complexos e contraditórios, e não irei agora repetir argumentos. Considerava-se, entretanto, no eixo do artigo, em relação a quem nesses protestos participa, que «o seu credo é que os indivíduos não existem para além da sua identidade, como não existiam, para o marxismo, para além da sua classe»; uma afirmação ligeira que parte de um juízo injusto e por isso justifica um comentário. Seguindo esse raciocínio, no mundo em que vivemos existiria então uma espécie de gente, chamemos-lhe simplificadamente os «identitários», que em nome das suas convicções replica formas de pensamento que tendem a desvalorizar a liberdade individual, recuperando escolhas real ou supostamente assumidas pelos «marxistas».
Ainda que com cambiantes, esse juízo é partilhado com bastante frequência, alimentando alguns mal-entendidos, pelo que vale a pena refletir sobre ele e sobre o que o envolve. Em relação aos dois qualificativos, ele resultou, de facto, de um equívoco básico, que consiste em confundir escolhas e programas destinados a agir no combate social de uma forma coletiva e em prol de interesses partilhados, com aquilo a que por vezes se chama «pensamento único». O termo foi cunhado em 1819 pelo filósofo alemão Schopenhauer para definir a doutrina que se sustenta a si mesma, constituindo uma unidade lógica independente e que assume um valor absoluto, excluindo por isso todas as outras. Foi dessa espécie de rolo compressor do pensamento humano e da opinião livre que, sob a forma de ideologia, se serviram também os sistemas políticos totalitários do século XX. Ignacio Ramonet serviu-se igualmente do termo para descrever a supremacia e o caráter opressivo do neoliberalismo.
Essa lógica de imposição de formas únicas e coletivas de observar o mundo, que no plano histórico pode ser identificada em muitos momentos, não significa, porém, que tudo o que é pensado e preparado em função de princípios e de objetivos compartilhados acabe por excluir a diversidade e, pior, que possa servir como instrumento dissuasor da liberdade individual. Apesar de alguns princípios comuns de interpretação e de transformação da realidade, os marxismos – por isto mesmo aqui definidos no plural – contiveram e continuam a conter a diversidade e o conflito, não impondo em muitos momentos uma forma exclusiva, unívoca e «certa» de pensar e de agir em grupo. Pelo contrário, eles estimulam até a capacidade de criar dentro da diversidade, e Marx defendia mesmo a dimensão contraditória do materialismo histórico e dialético como a caraterística principal da sua dinâmica. De idêntico modo, as lutas identitárias, não apenas definem uma diversidade de causas extremamente ampla, como estimulam, elas próprias, a produção de novas lógicas de compreensão do mundo que, pela diversidade que invocam, possuem uma natureza profundamente emancipatória e, no plano das escolhas, potencialmente libertadora. Ressalvando algumas perversões identificadas, nada onde «os indivíduos não existem para além da sua identidade».
A liberdade do sujeito é aqui central e decisiva. Ao contrário do que alguns dos críticos do pensamento identitário sugerem, como acontecerá com a jornalista do «Público», este não inspira um «espírito de manada», capaz de submeter quem dele participa a valores e a programas, agindo coletivamente como se desprovida de cérebro. Completamente ao invés, o trabalho identitário estimula a diversidade e, por isso, tende a ampliar a liberdade de escolha. Se na primeira metade do século XX, e apesar do impacto do modernismo, era ainda possível agrupar as escolhas éticas e políticas num número limitado de «gavetas» – como bem lembrará quem transporte consigo a memória desse tempo –, nas sociedades democráticas hoje não há gavetas que cheguem, sendo este um poderoso fator da autonomia individual. O cerne está, afinal, no papel da responsabilidade, e esta, como escreveu Nelson Mandela, «reside na forma como se respeitam as escolhas e a liberdade dos outros». As nossas e, insiste-se, também as dos outros.