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16-04-2020        Público

Há seis meses atravessei a Europa, de Portugal até à Alemanha, numa viagem que me ofereceu motivos de inspiração, aprendizagem e reflexão, dos quais dei conta em dois artigos publicados neste jornal ("Anatomia de uma viagem”, I e II, de 1 e 2 de outubro de 2019). Para além dos percursos inesperados para onde, na viagem, somos ao mesmo tempo transportados pelos trilhos da memória, foi exaltante a sensação de liberdade perante a ausência de fronteiras, passar de um país a outro sem que se note qualquer policiamento ou controle, levando o viajante a sentir-se parte desse projeto fantástico que é a utopia de uma Europa moderna, aberta, multicultural, solidária e democrática. Os incríveis índices de mobilidade, visíveis no volume de viagens de avião, nos intensos fluxos das autoestradas transfronteiriças, nos dez milhões de estudantes que circulam desde há 30 anos pelas universidades europeias com apoio do programa Erasmus, a mobilidade da força de trabalho, com vários milhões de portugueses a circular por empresas e instituições transcontinentais, os permanentes encontros internacionais em torno de eventos de diversos tipos (os concertos, os encontros desportivos, os intercâmbios escolares, as cidades geminadas, as competições internacionais de futebol), enfim, a multiplicação das redes e grupos de trabalho, no mundo empresarial mas também em projetos de solidariedade e correntes de ativismo através do ciberespaço, são alguns dos exemplos reveladores da vida “nómada” (nomadismo virtual-real) a que nos habituámos ao longo das últimas décadas. A viagem e a evasão deixaram de ser um exercício exclusivo das elites ou uma extravagância de escritores e poetas. Tornaram-se opções importantes e acessíveis a todos nas democracias avançadas.

E, de repente, aqui estamos. Parados, num confinamento geral. Receando ver em cada desconhecido algum risco de contágio. Espreitando da janela o que se passa lá fora ou, munidos dos necessários apetrechos (máscaras, luvas, desinfetantes – quem não os pode comprar fabrica-os em casa), correndo agilmente entre a farmácia ou o supermercado e o apartamento. Reaprender a lavar as mãos, como se a natureza – além de nos punir – nos quisesse ensinar as coisas mais simples. Aquelas que nos passavam ao lado na nossa pressa diária em busca do vazio, como a atmosfera pesada e poluída das nossas cidades. Estaremos a pagar o preço pelos excessos cometidos: enquanto os pulmões humanos são asfixiados, os pulmões da natureza recuperam em poucas semanas elevados níveis de oxigenação. Mas se o sistema global funciona como um organismo, talvez estejamos a ser as cobaias desse vasto processo de regeneração e reciclagem, com a Terra a gerar novos anticorpos para se defender. O aviso está dado. Para preservar e revigorar a vida do planeta precisamos de reverter-nos de células cancerígenas em sistema imunológico da natureza, elaborando um “plano B” para o planeta A (o único que temos). O respeito pelo ambiente, a efetiva solidariedade entre nós, os humanos, como parte integrante da natureza, pode ser o antídoto da vertigem individualista que nos atingiu. Vivemos estes dias isolados, mas tomando consciência de que cada um de nós é um elo importante nesta corrente pela sobrevivência. Num isolamento que nos obriga a ressignificar o sentido de união e comunidade.

A mobilidade como emancipação tem sido fortemente estimulada pelo mercantilismo exacerbado em que vivemos. Mas foi nele que muitos de nós nos habituámos aos modos de vida e condições de segurança que as sociedades ocidentais nos ofereceram, mais do que qualquer outro sistema experimentado até hoje. É do usufruto dessa liberdade e desse conforto que não estamos preparados para abdicar. Nem precisamos. Apenas há que travar o egoísmo e olhar para o outro lado. Não faz sentido prescindir das liberdades e direitos alcançados em nome de uma mítica alternativa igualitária e pós-capitalista. É certo que o mercado e a finança ganharam um poder excessivo com a globalização neoliberal. Mas, como há poucos dias afirmava uma das vozes mais críticas do atual modelo (Boaventura de Sousa Santos), o mercado e o capitalismo terão que ter, apesar de tudo, o seu espaço numa economia mista onde podem coexistir com modalidades organizativas de outro tipo, como o cooperativismo, a partilha solidária e outras “utopias reais”. É por isso urgente travar e inverter a matriz anterior, recuperando alguns dos princípios keynesianos para redesenhar as políticas europeias (e nacionais) do futuro pós-pandemia. A centralidade do Estado social como ferramenta de coesão é agora ainda mais inquestionável.

Ao lado da mobilidade por opção existem, obviamente, os fluxos de mobilidade por obrigação ou necessidade. Os desastres humanitários causados pela fuga desesperada de milhões de migrantes e populações inteiras em luta pela sobrevivência são exemplos dramáticos. Outras calamidades do passado (a “peste negra” ou a “pneumónica”, por exemplo) já mostraram que os veículos do vírus mortal podem ser as próprias vítimas de outros trânsitos (navegadores, comerciantes, escravos, exércitos, trabalhadores), como ocorreu durante a idade média e o colonialismo ou, atualmente, com o tráfico de mão-de-obra barata da era da globalização. Quando o negócio criminoso se conjuga com a facilidade de mobilidade e deslocalização de investimentos, estão criadas as condições para a propagação do contágio. E aí reside uma das perversidades dos nossos hábitos consumistas que objetivamente alimentam novas formas de servidão (ainda que ninguém pense nisso). São inúmeros os casos abusivos de exploração de força de trabalho oriunda das mais diversas latitudes, inclusive do continente asiático, como acontece na agricultura intensiva em estufas (nomeadamente no noroeste alentejano). Há cerca de cinco anos, uma reportagem da Deutsche Welle (DW) divulgava a proliferação de centenas de microempresas chinesas na região da Toscana e Bergamo, no norte de Itália (oficinas informais conhecidas por “Capannoni”), que terá atingido recentemente volumes da ordem dos 200 mil trabalhadores (muitos deles recrutados precisamente em Wuhan), a trabalhar e a viver em condições sub-humanas, inclusive denunciadas pelo Papa Francisco quando, em novembro de 2015, visitou a cidade de Prato, conhecida por “pequena China”, naquela região. Exemplos idênticos foram noticiados em Barcelona no fabrico das nossas roupas de marca. Coincidência ou não, esses foram dois dos focos mais intensos de propagação da covid-19, justamente na sequência de viagens em ambos os sentidos por altura da entrada no novo ano chinês (25 de janeiro).

As autoestradas abertas e a imensa sensação de liberdade que ainda há pouco se ofereciam, naquela travessia, como promessa radiante para a Europa, ficaram de repente bloqueadas. Nunca fui exilado, mas hoje, como muitos outros, é assim que me sinto. Confinado numa cidadezinha do ex-bloco de Leste, vivo dias de perplexidade e angústia, embora no conforto de um sótão que nos permite adormecer olhando as estrelas. Por um lado, o ambiente tornou-se ainda mais calmo do que já era, permitindo-nos acordar ao som de um melro que pousa por hábito a escassos metros das nossas cabeças e canta descaradamente no meio do silêncio geral, ao romper da manhã. Pressente-se, em suma, um crescente contentamento da natureza, que está em contraciclo com o volume da calamidade humana, que continua a crescer. Saberemos recalibrar esse desequilíbrio? A extensão do desastre parece por à prova não só a nossa resiliência como sociedade mas também a nossa capacidade individual de interpretar os sinais e alterar hábitos enraizados. A utopia só é possível se soubermos tirar as lições do passado e aprender com o drama coletivo do presente. É possível preservar os direitos praticando a solidariedade, mas se a maioria de nós tem consciência disso, individualmente, será que os líderes políticos nos acompanham? Devem olhar para trás e refletir.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
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