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09-07-2019        Público

Poderão as nossas cidades – ou até mesmo os nossos bairros – contribuir para a revitalização da democracia? Numa altura em que tanto se diz, escreve e pensa sobre a crise da democracia e o fantasma de um novo autoritarismo, urge aproximar os cidadãos da tomada de decisões e recredibilizar o sistema político. Acreditamos que os municípios terão um papel vital neste processo.

Para muitos, as cidades são a unidade política por excelência. Enquanto os jornais e redes sociais se focam maioritariamente no jogo politico-partidário a decorrer na esfera nacional, as autarquias são responsáveis pela “magia” que silenciosamente define inúmeros aspectos essenciais do nosso dia-a-dia: da potabilidade da água que sai das nossas torneiras à mobilidade urbana... e tantas outras coisas que (felizmente) tomamos por adquiridas em 2019.

O cientista político norte-americano Benjamin Barber foi talvez quem mais celebrou a cidade enquanto espaço político em que o “pragmatismo” domina e a “ideologia” cede ao imperativo de solucionar problemas. Não é preciso subscrevermos por completo esta visão de Barber para apreciarmos que ele toca em algo de fundamental. A cidade combina a urgência de manter a funcionar a infra-estrutura que suporta a vida quotidiana com uma escala em que as decisões podem ser rapidamente implementadas — e os seus efeitos observados pelos cidadãos.

Será, possivelmente, por razões semelhantes que as cidades estão na vanguarda da participação cívica. Ao nível municipal, os orçamentos participativos (OP) são já comuns um pouco por todo o mundo. No entanto, a actual experiência do Governo português de conduzir um orçamento participativo ao nível nacional foi algo de internacionalmente inovador. Esta comparação ilustra de forma clara a discrepância que existe entre a abertura dos municípios e dos governos centrais à participação dos cidadãos. Uma imagem semelhante tende a emergir quando consideramos a adopção de novas tecnologias para aproximar os cidadãos das instituições públicas. A título de exemplo, compare-se o convidativo portal “Lisboa Participa” – através do qual a Câmara Municipal de Lisboa recolhe sugestões e pedidos dos munícipes – com a seca página de “Cidadania e Participação” no site da Assembleia da República.

É neste contexto que acreditamos que os municípios podem fazer a diferença no esforço para recredibilizar o exercício da política: mais ágeis e com uma cultura política mais aberta à participação cidadã, as autarquias têm a possibilidade de dar o próximo passo nesse sentido. Falamos, mais concretamente, de incluir cidadãos comuns no próprio processo de tomada de decisões — e fazê-lo de uma forma informada, reflectida e hiperlocal.

Neste breve texto, gostaríamos de propor uma visão para uma cidade mais participativa, bem como uma primeira medida concreta que poderia tornar essa visão realidade. A estratégia passa por criarmos uma cidade em que os cidadãos estão activamente envolvidos na tomada das decisões que, com frequência, mais directamente os afectam: as intervenções pela autarquia no(s) seu(s) bairro(s) de residência e trabalho.

Para tornar esta visão realidade, uma autarquia poderia criar uma rede participativa ao nível dos bairros. Organizada ao nível hiperlocal, esta rede participativa seria formada por painéis de munícipes, cada painel representando um bairro diferente e sendo formado por 30 a 40 munícipes. Estes participantes seriam escolhidos por sorteio entre os residentes e trabalhadores desse bairro. O painel desempenharia as suas funções por um ano; após esse período, um novo painel seria seleccionado. Esta rede participativa complementaria os actuais órgãos de decisão ao nível local: câmaras municipais, assembleias municipais e juntas de freguesia. Ao contrário desses órgãos eleitos e integrados maioritariamente por cidadãos com o interesse e a inclinação a se dedicarem a tempo inteiro à política, os painéis de bairro seriam formados por cidadãos comuns que trariam a sua perspectiva quotidiana às matérias a analisar.

Fruto de um compromisso político da parte da autarquia, cada painel de bairro seria chamado para deliberar sobre as intervenções autárquicas nos espaços públicos desse bairro. Poderia também fazer sentido que um painel de bairro fosse consultado sobre intervenções em outros bairros, quando estas tivessem o potencial de afectar quem reside ou trabalha no primeiro bairro. Em ambos os casos, o objectivo seria criar uma ferramenta participativa que daria aos munícipes uma palavra decisiva, ao lado dos arquitectos e engenheiros, nas decisões que afectam os bairros onde residem ou trabalham.

Meramente a título de exemplo, consideremos algumas intervenções que foram discutidas recentemente nas cidades onde vivemos. É comum dizer-se que há um défice de participação cívica, porém decisões como o fecho do Miradouro do Adamastor em Lisboa, a construção de um parque de estacionamento subterrâneo no Jardim do Rossio em Aveiro ou o licenciamento no centro histórico de Braga de um pavilhão tipicamente suburbano para instalação de um hipermercado geraram uma forte contestação. Nestes três casos, a participação de centenas de munícipes ocorreu de maneira espontânea e “reactiva” por não terem sido criadas genuínas oportunidades de participação pelas autarquias durante os respectivos processos de decisão. É por isso que a forma como as intervenções urbanas são decididas dentro das autarquias parece, aos olhos de tantos, estar divorciada da população da cidade. Tudo indica que os mecanismos existentes de consulta pública são limitados na sua eficácia ou nem chegam a ser utilizados.

O que aqui propomos é uma visão diferente para a cidade. Cada painel de bairro teria oportunidade para reflectir a fundo sobre a intervenção proposta, ouvindo tanto os seus proponentes como os seus detractores. Teria a possibilidade de consultar peritos e técnicos independentes, por forma a obter a informação e conhecimentos necessários para poder tomar uma decisão tecnicamente informada. E, através da sua vivência quotidiana no bairro, os membros do painel “auscultariam” inevitavelmente os restantes residentes e trabalhadores do bairro. A autarquia, por sua vez, comprometer-se-ia a receber e tomar em consideração todas as recomendações geradas pelos painéis, dando respostas detalhadas e francas a todos os pontos por eles levantados.

A aplicação deste modelo de envolvimento dos cidadãos no processo político ao nível local seria um primeiro e importante passo para demonstrar à população que o sistema político não exclui o cidadão comum da tomada de decisões. E não precisamos de olhar para longe para encontrar outras aplicações da mesma ideia em municípios pelo mundo fora. Por exemplo, a câmara de Madrid constituiu recentemente um “Observatorio de la Ciudad” que toma a forma de um painel de 57 madrilenhos escolhidos por sorteio. Um processo semelhante é, há vários anos, usado numa das regiões de Berlim para estabelecer prioridades orçamentais. E, no Canadá, cidades como Vancouver e Toronto usam painéis aleatórios de munícipes para definir prioridades no planeamento urbano. As autarquias portuguesas que decidam criar uma rede participativa por bairros, como propomos neste artigo, estarão numa posição privilegiada: tratar-se-á de, simultaneamente, usar um método de participação cívica “com provas dadas” e dar um passo genuinamente inovador.

Acreditamos que os municípios portugueses podem desempenhar um papel fundamental na renovação do nosso sistema político. Muitas autarquias em Portugal têm uma cultura de abertura e proximidade ao munícipe que possibilita tornar esta visão realidade. Os benefícios da mesma seriam múltiplos: viveríamos em cidades administradas de forma mais eficiente por autarcas que teriam uma visão mais rica e detalhada das reais necessidades e prioridades da população. Para além disso, estaríamos a criar uma democracia de qualidade em que os cidadãos estariam mais próximos das decisões políticas. Cremos ser uma visão na qual vale a pena apostar e esperamos continuar a colaborar com autarquias portuguesas para a tornar realidade.


 
 
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José António Bandeirinha



 
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