Na cerimónia em que o Supremo Tribunal Federal do Brasil certificou os resultados da recente eleição presidencial – ou, na linguagem oficial, diplomou os candidatos eleitos –, habilitando o presidente e vice-presidente eleitos a serem empossados nos respetivos cargos, um passo do discurso do presidente eleito Jair Bolsonaro merece particular atenção: “O poder popular não precisa mais de intermediação. As novas tecnologias permitiram nova ligação direta entre o eleitor e seus representantes”.
Assim é definido, sumariamente, o novo projeto populista - bem diferente do populismo “histórico” associado aos projetos desenvolvimentistas das décadas de 50 e 60 -. que desvaloriza as formas, alegadamente tornadas obsoletas pela tecnologia, de representação e participação democráticas, de organização dos cidadãos para a intervenção política, dos espaços de enfrentamento agonístico e de deliberação próprios do debate numa esfera pública democrática. Instituições como o Congresso de Deputados ou os Conselhos deliberativos de políticas públicas, a imprensa livre ou as formas de ação e organização coletiva dos cidadãos e das cidadãs são, assim, remetidos para um outro tempo, um passado que se deseja que não volte.
O próprio processo eleitoral que levou Bolsonaro à presidência oferece uma ilustração exemplar da estratégia de conquista do poder pelo populismo autoritário: ausência deliberada e estratégica do candidato dos debates programados nas grandes cadeias de televisão; falta de definição de um programa e substituição da discussão de propostas políticas pela proliferação de fake news e de proclamações, muitas vezes contraditórias; transformação dos adversários no pleito eleitoral em inimigos do povo e do país, cuja derrota justifica o recurso a todos os meios. A transformação da luta contra a corrupção numa cruzada moral mobilizando seletivamente o direito e o poder judiciário em aliança com os meios de comunicação dominantes para a descredibilização e eliminação dos adversários políticos, por sua vez, preparou o terreno para a busca de legitimação, por via eleitoral, do projeto do novo populismo autoritário. A viabilidade de um modo de governar sem a “fricção” da dinâmica própria da democracia, sem esfera pública, sem imprensa e meios de comunicação livres e sem debate, proclamando a obsolescência das “mediações” constituídas por partidos políticos ou pelas instituições parlamentares, tem um dos seus principais recursos nas tecnologias que permitem a comunicação “vertical” entre eleitores e eleitos, sem a interferência da comunicação horizontal entre cidadãos, da construção de plataformas, programas, movimentos e estratégias para a ação coletiva e para a intervenção política.
O reconhecimento da crise que atravessa os regimes democráticos e da sua vulnerabilidade aos projetos autoritários, demonstradas no caso do Brasil, não nos deve, contudo, fazer esquecer a multiplicidade de experiências democráticas existentes no mundo que ampliam, aprofundam e diversificam as formas de organização da vida em comum e da ação coletiva, a defesa da dignidade e dos direitos, a luta pela igualdade e pelo reconhecimento da diferença. Este é o caminho proposto para repensar a história e o futuro das experiências democráticas numa contribuição indispensável ao debate sobre a crise e o futuro da democracia. Demodiversidade: Imaginar novas possibilidades democráticas é uma obra coletiva que reúne trabalhos de investigadores e ativistas de vários continentes e regiões do mundo – África, Ásia, América Latina e Europa - organizada por Boaventura de Sousa Santos e José Manuel Mendes. Este livro é o primeiro de uma série que publica os resultados de um projeto internacional – ALICE: Espelhos estranhos, lições imprevistas. Definindo para a Europa um novo modo de partilhar as experiências do mundo - sediado no Centro de Estudos Sociais, dirigido por Boaventura de Sousa Santos e financiado pelo European Research Council.
Por todo o mundo existem experiências inovadoras que (re)inventam espaços, práticas e formas de organização e de ação, procurando ampliar e aprofundar a democracia. O debate, a dissensão, o protesto, a multiplicação e diversificação de novas formas de mobilização popular e de organização, longe de se terem tornado obsoletos, constituem o caldo de cultura em que cresce e se fortalece a democracia, em todas as suas versões. Como lembram os organizadores do referido volume, e como o demonstram as contribuições nele incluídas, a reinvenção da democracia exige, por um lado, uma crítica rigorosa da matriz liberal e eurocêntrica que caracteriza a história das instituições democráticas no Norte global e, por outro, uma indagação sobre as experiências múltiplas e diversas de democracia, em particular no Sul global, mas também nas formas de democracia participativa e de ação coletiva construídas no Norte.
As possibilidades e potencialidades que apresentam as tecnologias de informação e comunicação enquanto recurso para a ampliação e diversificação das formas de democracia, de cidadania ativa e de participação democrática sublinham a necessidade de ocupar um espaço que tem sido usado de maneira bem eficaz pelo populismo autoritário. Mas, reconhecendo embora a sua importância, não será a tecnologia a determinar o resultado da luta pela democracia. Esse dependerá da capacidade de criação, ampliação, proliferação, interlocução e articulação de espaços em que possam florescer a demodiversidade e as experiências de democracia intercultural.