Vivemos tempos paradoxais no nosso espaço público. A política e sobretudo o comentário político ocupam significativo espaço nos mais diversos meios de comunicação social, nomeadamente em canais de televisão, jornais, páginas da Internet, redes sociais. No entanto, o debate político raramente pareceu tão estreito nos seus temas e abordagens. Com honrosas e esporádicas exceções, as análises convergem nas velhas interpretações e posições do "centrão", alimentadas por uma relação, por vezes de manifesta cumplicidade, entre jornalistas, ex-detentores de cargos políticos e atuais atores políticos. A informação que recebemos surge-nos "contextualizada" e "cristalizada" em opiniões esvaziadas de capacidade crítica. Nessa formatação do comentário político, não cabem alguns dos fundamentais conteúdos novos e das dinâmicas que a conjuntura política que vivemos vai despoletando.
Pode acrescentar-se, com ironia, que o facto de o Presidente da República ser o mais qualificado dessa velha escola – e não se escusar a analisar e a comentar todos os factos e cenários – esvazia os conteúdos àqueles analistas. A alguns, resta-lhes o recurso à manipulação.
Um bom exemplo dessa manipulação de informação deu-se na última semana, aquando da publicação dos últimos números relativos ao crescimento económico que, em geral, excederam as expectativas. Como tal aceleração contraria a narrativa dominante ao longo do último ano, que afirmava a impossibilidade de êxito das políticas do Governo, rapidamente nos vieram explicar que esse crescimento tinha sido “impulsionado pelo investimento e pelas exportações”. Com toda a desfaçatez fazem de conta que o consumo nada tem a ver com o investimento, ignoram as alterações de comportamento das pessoas e das empresas face a indicadores de ordem política que lhes dão confiança, chegam mesmo a entrar na credibilização do raciocínio quadrado com que Passos Coelho pretende obter a paternidade daquele sucesso.
Entretanto, há questões cruciais que praticamente não são (e deviam ser) discutidas no espaço público. Em primeiro lugar, o caso da estratégia de Portugal na União Europeia (UE). Devemos procurar integrar o “núcleo duro” que se desenha em torno da Alemanha e da França, sujeito a regras que nos prejudicam, ou antes, defender com outros países em posição semelhante a Portugal, um redesenho da União em que haja lugar para todos?
Em segundo lugar, o emprego e a qualidade do emprego que estão a ser criados. Há dados que parecem mostrar que, apesar da redução do desemprego e da criação de novo emprego, se mantém em curso o processo de desvalorização dos salários que foi e será a principal causa da perda de população, em particular a mais jovem e preparada. Aquela tendência a confirmar-se decorre, pelo menos em parte, de alterações no enquadramento legal das relações de trabalho ocorrido nos anos da Troica e da propagação da precariedade. Devemos conformar-nos com o desequilíbrio instalado nas relações laborais, ou antes combatê-lo e contrariá-lo?
Em terceiro lugar, a segurança social e o cerne das políticas sociais – que em grande parte dependem do valor que atribuímos ao trabalho e ao emprego - constituem, sem dúvida, áreas vitais para o desenvolvimento e o bem-estar futuro da sociedade portuguesa. Deixamos que “as regras do mercado” e o individualismo exacerbado se vão impondo, ou encaramos tensões e problemas existentes e definimos compromissos coletivos a assumir?
Em quarto lugar, a saúde a educação e outros serviços públicos, todos eles debilitados por cortes e cativações ao longo dos anos. Devemos continuar a comprimi-los para conseguir excedentes orçamentais que possam trazer a dívida pública para os níveis exigidos pelas regras da UE, ou lutamos para fazer prevalecer o Estado Social mobilizando a sociedade para a sua defesa e atualização?
A política não está em fuga. Pode até reganhar centralidade com os anseios das pessoas mais presentes. Mas são precisas opiniões consistentes, vindas dos diversos quadrantes e sensibilidades da sociedade, que se afastem do comentário de entretenimento do “centrão” e tratem seriamente os problemas, que é preciso discutir e resolver.