Em Novembro de 2016 assinalaram-se os 10 anos da edição portuguesa do Le Monde diplomatique. Num colóquio sob o lema «Mapear bloqueios, construir democracia» foram tratados diversos temas, do Estado social aos media (ver a edição de Dezembro), passando pela geopolítica internacional. No texto que agora se publica, o economista Nuno Teles partiu da seguinte pergunta: a crise já acabou?
Oito anos passados da falência do banco Lehman Brothers e da espiral descendente do sistema financeiro e da economia global, a crise económica teima em pairar sobre nós. É certo que o colapso financeiro global de 2008-2009 não se repetiu desde então. No entanto, a crise económica foi-se transmutando ao longo destes longos oito anos, afectando de forma desigual diferentes espaços do capitalismo. A crise começou em Wall Street, centro nevrálgico da finança internacional, que mediou e comandou um modelo financeirizado de crescimento desequilibrado, alicerçado na divisão funcional entre países deficitários, com permanentes necessidades de endividamento, e países superavitários, em busca de «recipientes» para a reciclagem dos seus excedentes externos. Este modelo estava condenado ao fracasso. O endividamento de qualquer país está sempre limitado à capacidade de pagamento do serviço da dívida, ou seja, pela eventual conversão de défices em excedentes. Ora, dada a cristalização das posições dos países numa economia internacional dividida entre centro, semi-periferia e periferia, tal inversão de posições estava bloqueada à partida.
Se a crise começou no centro, com imediatos efeitos sobre o resto do mundo, o seu foco rapidamente se deslocou para novos espaços. O segundo acto desta crise teve lugar na zona euro, em 2011- 2012. Erradamente entendida como crise de dívidas soberanas, a crise europeia nasceu da sua própria divisão entre países credores e devedores, tendo neste caso os desequilíbrios macroeconómicos tomado proporções nunca antes vistas. Tais desequilíbrios, inicialmente alimentados pela confiança fornecida pela União Económica e Monetária aos agentes financeiros, tornaram as disfuncionalidades desta última salientes. Face aos impactos assimétricos da crise, foi notória a incapacidade dos diferentes Estados em actuar, quer pela via da desvalorização monetária, vedada por uma política monetária definida por um banco supranacional (Banco Central Europeu), quer pela via orçamental, constrangida pelas regras impostas pela Comissão Europeia. A reacção europeia foi marcada pela imposição de austeridade, por forma a assegurar a confiança dos mercados financeiros, condenando a zona euro à recessão e países como a Grécia, Espanha ou Portugal a um tratamento de choque de desvalorização interna, com efeitos dramáticos sobre o emprego e o bem-estar.
A maioria dos países ditos emergentes pareceu, num primeiro momento, atravessar a crise internacional sem grandes custos, graças a uma combinação de fluxos financeiros em fuga do centro e de uma subida dos preços de matérias-primas, alimentada ela própria por este afluxo de capital. Contudo, com a relativa estabilização financeira de 2013-2014 e a inversão da política monetária norte-americana, assistiu-se a um terceiro acto da crise. Os fluxos financeiros inverteram-se e os preços das matérias-primas colapsaram, condenando à falência o modelo de desenvolvimento até então seguido.
Hoje, estamos num quarto acto da crise, onde a volatilidade financeira assume, aparentemente, um papel menor. Os países mais desenvolvidos vivem agora sob um prolongado regime de baixo crescimento, desemprego de massas, quase deflação e taxas de juro nulas, reflectindo um excesso de capacidade produtiva à escala mundial, onde os incentivos ao investimento produtivo são inexistentes, e um esgotamento da política monetária expansionista até aqui seguida.
Estagnação secular: condenação tecnológica?
Deste novo regime de crescimento medíocre resultou um debate em torno da ideia da «estagnação secular» nas páginas da imprensa económica e na academia. Desde 2013, este conceito antigo ganhou nova visibilidade através dos textos publicados por Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro durante a administração de Bill Clinton e ex-presidente da Universidade de Harvard, que recuperou a discussão introduzida pelo (esquecido) economista institucionalista Alvin Hansen no final dos anos trinta, num momento em que, dez anos depois da crise bolsista de 1929, a recuperação económica também tardava em aparecer. Hansen argumentava então que, devido ao abrandamento do crescimento demográfico norte-americano e ao esgotamento da sua capacidade de inovação tecnológica, a economia norte-americana se dirigia para um longo período de estagnação, em que os incentivos ao investimento privado seriam insuficientes para sustentar níveis de emprego elevados. A solução passaria por um permanente reforço da despesa e endividamento público por forma a permitir um relançamento da procura agregada, do investimento e da inovação tecnológica. Summers recupera, grosso modo, os mesmos argumentos, defendendo hoje mais investimento público em infra-estruturas e uma redução de impostos sobre o capital como forma de redinamizar a procura agregada na economia norte-americana [1].
O debate sobre estagnação secular foi lançado por Larry Summers, mas foi a publicação do best-seller The Rise and Fall of American Growth (ed. Princeton University Press, 2016) por Robert Gordon que forneceu a robustez teórica e histórica a este debate, conquanto o autor não utilize o conceito de estagnação secular e, na verdade, o seu exaustivo trabalho de história económica preceda largamente a crise económica internacional de 2008-2009. Preocupado com o abrandamento da economia, o aumento das desigualdades e a precarização das relações de trabalho nos Estados Unidos desde os anos setenta, Gordon oferece-nos uma detalhada história da economia norte-americana desde o final do século XIX até aos nossos dias, cobrindo temas tão diversos (e fascinantes) como a evolução da forma como os norte-americanos trabalham, comem, vestem, se deslocam e comunicam. O autor argumenta que o extraordinário crescimento económico durante o século XX foi uma anomalia histórica que se deveu à combinação fortuita de um conjunto de inovações tecnológicas do início do século (ironicamente contemporâneas do trabalho de Alvin Hansen), transformadoras da produção e do modo de vida de todos os norte-americanos. A coincidência histórica do surgimento do motor de combustão e da electrificação teria permitido o aparecimento de um cacho de inovações potenciadoras de um aumento exponencial da produtividade do trabalho e do investimento. Por exemplo, o surgimento da «casa em rede» – em que esta se encontra ligada a várias redes (electricidade, saneamento, estradas, telefonia) – teria, por um lado, implicado um enorme esforço de investimento em sectores intensivos em capital e, por outro lado, possibilitado o surgimento de novo emprego bem remunerado. Depois da sua rápida popularização, os ganhos produtivos potenciados por este acaso tecnológico ter-se-iam esgotado a partir do final dos anos sessenta. As últimas décadas seriam por isso marcadas por inovações sobretudo incrementais (melhores automóveis e aviões) e não tanto por tecnologias radicais, equivalentes às do início do século (ainda não temos carros voadores ou energia produzida com «fusão a frio»), com uma excepção, as tecnologias de informação. Contudo, estas últimas, embora tenham mudado drasticamente os nossos hábitos de entretenimento e de comunicação, não teriam grandes efeitos no aumento da produtividade. Segundo Gordon, a economia norte-americana está, pois, condenada a um retorno à «normalidade» de baixo crescimento, a que se somam novos «ventos contrários» oriundos da crescente desigualdade, do declínio demográfico e do excessivo endividamento.
Então, e a crise?
O debate económico presente é assim marcado por uma obsessão com a tecnologia e suas (im)possibilidades. Curiosamente, em paralelo com a abordagem tecno-pessimista de Robert Gordon, assistimos também ao pessimismo de outros autores, mas desta vez provocado pelo espectro da substituição de trabalho por máquinas [2]. Esta viragem «tecnológica» produz um estreitamento, senão determinismo, do debate sobre a política económica e o nosso futuro colectivo, cujo destino parece fora do nosso alcance. As recomendações políticas afastam-se, por isso, do domínio da produção e da distribuição primária de rendimento entre trabalho e capital, deslocando-se para o da redistribuição de rendimento, seja por sistemas fiscais mais progressivos e pela valorização do salário mínimo, como sugere Robert Gordon, seja pelo do rendimento básico universal, cada vez mais popular da esquerda à direita. A recusa do estreitamento do debate económico não deve conduzir, contudo, ao abandono da tecnologia como domínio da política. Pelo contrário, urge desenvolver um entendimento da tecnologia não como «acaso» exógeno à economia, mas sim como resultado de escolhas políticas, que resultam de determinadas configurações das relações de produção e que reforçam trajectórias na relação de poder entre o capital e o trabalho [3].
Além da recente obsessão em torno da tecnologia, um dos efeitos mais perniciosos do debate mais convencional sobre estagnação secular é a negligência em relação ao papel da finança nas economias contemporâneas e a sua responsabilidade nas diferentes fases da actual crise. O poder financeiro é entendido como mero risco ou constrangimento à acção pública, ignorando-se, assim, como as relações de crédito assumiram novas qualidades nas últimas décadas, permeando novas esferas da economia e da sociedade.
Mais concentrada e centralizada, a finança continua hoje com o mesmo modelo de negócio que nos conduziu à crise, alocando capital de forma deficiente face às necessidades de crescimento e emprego e criando novos focos de instabilidade, que bloqueiam a recuperação económica e a criação robusta de emprego. Qualquer discussão sobre investimento, progresso tecnológico e organização da produção não pode, por isso, ignorar a necessária refundação do sector financeiro, enquanto mecanismo de mobilização e alocação de recursos numa economia. Esta refundação deve servir de mote à recuperação política da ideia de planeamento económico e democracia industrial. Como Robert Gordon assume no seu livro (no que é ignorado pelos seus divulgadores), foram opções políticas que permitiram a expansão e popularização das tecnologias acima referidas e o consequente crescimento. O planeamento económico nascido do esforço de guerra norte-americano, aliado a um movimento operário em ascensão, foram decisivos para o surgimento de uma indústria voltada para o consumo de massas e para a catadupa de inovações tecnológicas que marcaram os «trinta anos gloriosos» dos pós-guerra [4].
A recuperação política do planeamento e da participação democrática na economia através do controlo do sector financeiro – que começa pelo controlo nacional do banco central e da moeda – ganha particular relevância à luz das mudanças políticas em curso. Face à viragem do discurso público relativo à política orçamental e investimento público – visível tanto nas promessas de Donald Trump como nas recentes recomendações da Comissão Europeia –, não se pode cair na armadilha da celebração de ocas mudanças da política orçamental, como já aconteceu aquando da viragem expansionista da política monetária. Pelo contrário, um plano para a economia, com um sistema de crédito público no seu centro, que tenha como objectivo a promoção do emprego, de relações laborais reequilibradas e do progressivo abandono da economia fóssil, é parte de qualquer estratégia nacional mobilizadora para a saída da crise.
Notas
[1] Como amiúde acontece, o debate convencional torna invisíveis outros contributos históricos, vindos das margens da teoria económica, nomeadamente os de pós-keynesianos, como Josef Steindl, ou os da economia política marxista, como os de Paul Baran e Paul Sweezy, onde as estruturas monopolistas e oligopolistas de mercado ganham relevância na explicação das tendências estagnacionistas do capitalismo. Para um revisão destes contributos, veja-se o artigo de Ekahrd Hein intitulado «Secular Stagnation or Stagnation Policy? Steindl after Summers», de 2015, disponível em www.levyinstitute.org/pubs/wp_846.pdf. Para uma revisão do debate histórico no seio da teoria económica convencional, veja-se o artigo «Secular Stagnation: the History of a Macroeconomic Heresy», de Roger Backhouse e Mauro Boianovsky, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=2602903.
[2] Martin Ford, autor de Robôs – A ameaça de um futuro sem empregos (ed. Bertrand, 2016), vislumbra um futuro onde a robotização e a inteligência artificial tornarão obsoletos boa parte dos empregos de hoje, quer não qualificados – dois terços dos postos de trabalho de um restaurante de comida rápida podem hoje ser robotizados – quer qualificados – agências de notícias como a Agência France Press (AFP) já publicam artigos integralmente escritos por inteligência artificial.
[3] A análise histórica fornecida por Andreas Malm no seu magistral Fossil Capital (ed. Verso Books, 2016) mostra como a mais simbólica tecnologia do capitalismo industrial do século XIX, a máquina a vapor, não prevaleceu graças a ganhos de eficiência ou de custo. Pelo contrário, tecnologias que envolviam o uso da água como força motriz eram então mais baratas. Foi a dificuldade e a aversão ao planeamento e à cooperação que a gestão da água requeriam, aliadas à mobilidade da máquina a vapor e do carvão, que justificou a vitória do combustível fóssil (carvão) sobre o poder inesgotável da água, já que estas permitiam um maior poder e controlo sobre o factor trabalho.
[4] Os trabalhos da economista Mariana Mazucatto sobre o Estado «empreendedor» documentam detalhadamente a importância que deve ser atribuída aos poderes públicos na investigação e desenvolvimento das tecnologias que hoje abundam nos nossos lares.