Há séculos que a existência do Império Otomano, e mais tarde da Turquia, representa uma fonte de temores e de problemas para a Europa. A expansão do seu território no final da Idade Média, traduzindo um avanço do Islão e de um modelo de sociedade totalmente diverso do instalado nos reinos e Estados cristãos, assustou milhões de europeus ao longo de gerações, e convém lembrar que, não fora a derrota do Grão-Vizir Kara Mustafá em 1683, na decisiva batalha de Viena, com todas as probabilidades a história do nosso continente teria sido radicalmente outra. Foi, aliás, a continuação deste risco que determinou o empenho de D. João V quando, em 1717, enviou uma esquadra de seis poderosos navios a ajudar Veneza na batalha naval de Matapan. Mas apesar do avanço militar ter sido estancado, o recuo decisivo apenas foi consumado em 1923, com a retirada turca de quase toda a Península Balcânica e a proclamação da República, sob a liderança secular, modernizadora (leia-se «ocidentalizante») e formalmente democrática de Kemal Atatürk.
A partir dessa altura, a Turquia passou a assumir basicamente, por entre vicissitudes e viragens políticas de vária ordem, o lugar que ocupou até agora: o de uma espécie de Estado-fronteira, separando dois universos que, sob múltiplos aspetos, têm permanecido não só desiguais como antagónicos. Se a sua posição na NATO e a aproximação à União Europeia, bem como a emergência de uma cultura urbana associada à juventude estudantil e a uma classe média ilustrada, puderam configurar uma certa inclusão europeia, a diversidade étnica, a predominância do mundo rural, e principalmente a recuperação do lugar de um Islão assertivo, associada à preservação de contradições sociais, à subvalorização do lugar das mulheres e à exclusão das minorias, em particular da curda, empurra-a para uma órbita muito diferente. Em qualquer caso, um país de 80 milhões de habitantes e com uma posição geoestratégica como aquela que a Turquia detém, vincada nos últimos tempos com o dramático movimento de refugiados na região, transformará sempre a supremacia de uma ou de outra dessas tendências num fator de desequilíbrio capaz de manter a sociedade turca no centro do vulcão.
A situação atual, gerada mais pelo violento e esmagador contragolpe de Recep Erdogan que pelo estranho e inábil golpe militar que este declara pretender combater, acentuará esse conflito e esse problema. O endurecimento do regime, associado agora a uma repressão brutal, centrada no ataque aos juízes, aos advogados, aos professores, aos estudantes, aos jornalistas, aos ativistas dos direitos humanos, aos militares (durante largas décadas um dos esteios do laicismo) e às minorias étnicas e religiosas, dilui de vez a sua dimensão formalmente democrática, conduzindo a Turquia para uma situação incompatível com as práticas e os valores básicos de uma Europa que, apesar das suas enormes tibiezas e graves contradições, preserva ainda um modelo político e societário assente no Estado de direito e nas liberdades. Resta saber se, para os governos europeus, esta contradição será suficiente para, de uma vez por todas, fazerem saber que na grande casa que integram – em estado de ruína e a precisar de obras urgentes e profundas, mas ainda de pé –, não existe, não pode existir, lugar para um Estado agressivo e governado por uma ditadura. É o mínimo que se lhes deve exigir.