Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
19-04-2014        Jornal de Notícias

Nestes dias carregados de memórias sobre o Crucificado de Nazaré, observamos que a austeridade imposta aos sofredores de hoje encontra as mesmas causas e causadores de sempre: aqueles que para não abdicarem dos seus poderes e privilégios não hesitam em sacrificar no altar dos seus interesses, os mais pobres e vulneráveis.

Hoje, como há 2000 anos, as tensões mais brutais situam-se nos combates pelo desabrochamento das condições necessárias e imprescindíveis para que os seres humanos possam realizar-se nas suas dimensões pessoais, familiares, culturais e do espírito, em sociedades com equilíbrios entre o individual e o coletivo.

Esta austeridade feita em benefício de alguns, descarrega sacrifícios e pesadas cruzes sobre os trabalhadores e os reformados, sobre os pobres e os excluídos, procurando torná-los culpados de crimes que outros cometeram e de um sistema económico e financeiro iníquo nas suas raízes e práticas. Vemos correr lágrimas e gotas de sangue em milhões de cidadãos: por aí escorrem dores, angústias, incertezas, medos do presente e do futuro.

Na sociedade em que estamos, há muitas formas de matar projetos de vida individual e coletiva e também vidas concretas. A violência das armas continua a matar, mas as precariedades e inseguranças, a proliferação de riscos provocados por ganância humana, os processos de apropriação ilimitada de riqueza e as práticas governativas que se distanciam dos problemas das pessoas, produzem muita destruição e morte. É o caso da governação que temos no nosso país.

Face ao recente anúncio de cortes orçamentais em 2015 um cínico não pode deixar de considerar que se observa significativo progresso no discurso do Primeiro-ministro (PM) e do governo, pois, sempre é melhor esconder do que mentir. De facto, na entrevista do PM à SIC continuaram a estar presentes algumas mentiras mas, acima de tudo, uma enorme quantidade de exercícios de camuflagem de factos, de ocultação de objetivos e consequências das políticas enunciadas, ao mesmo tempo que esteve ausente um enorme leque de temas fundamentais para os portugueses. Na conferência de imprensa da Ministra das Finanças, o exercício da omissão das medidas concretas que planeiam, e dos seus impactos reais, foi total.

O governo, há muito esgotado, já não se pode dar ao luxo de prometer mundos e fundos, a não ser para um futuro radioso, mas tão longínquo que não alimentará nenhum sonho. É por isso que agora esconde o que faz com uma mão, enquanto nos mostra com a outra pombinhas a esvoaçar. Tendo por intenção despedir, dizem que vão “libertar” trabalhadores. Esta semana tiraram da cartola 1,4 mil milhões de cortes e anunciaram que desta vez serão cortes sem dor. Gorduras que afinal lá estavam, mas que ninguém tinha visto. E para que tudo pareça sério, até tiveram o descaramento de dizer que os consultores, a quem foram pagando chorudos honorários, não servem para nada.

É claro que isto não é sério! Os 1,4 mil milhões vão fazer falta a muita gente. Se há corte há dor. Se em algum momento a dor não for sensível, é porque há truque. O desaparecimento de departamentos de ministérios e de funções públicas vai provocar desemprego, diminuição de condições e meios para garantir aos portugueses direitos sociais fundamentais como a saúde, o ensino, a proteção social. A dor, o sofrimento, a crucificação pode estar a ser apresentada em pílulas mais douradas, mas serão para os mesmos.

Há 2000 anos o sacrifício não derrotou um projeto. Quando não foi subvertido, esse projeto serviu de inspiração e de dinamismo para milhões e milhões de seres humanos e tornou-se, muitas vezes, valioso contributo para uma ação transformadora das sociedades.

Hoje, perante o avanço do capitalismo selvagem e do seu cortejo de sofrimento e de morte, importa consolidar convicções de não submissão, afirmar valores e um projeto que faça despertar e mobilizar as consciências, que concretize a esperança. As alternativas constroem-se com pessoas que abraçam causas comuns, que possuem uma força interior dinamizada pela solidariedade, pela dignidade e pela justiça, que procuram compromissos capazes de concretizar sonhos.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
temas
crise    austeridade    capitalismo