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28-03-2014        Jornal de Notícias

O descrédito social da política contemporânea passa, e muito, pela noção cada vez mais disseminada de que só as promessas de regressão são sérias e de que todas as promessas de transformação que acrescentam dignidade e direitos às nossas vidas são demagogia irresponsável. Quando rigor só pode rimar com sofrimento e melhoria de condições passou a ser uma questão de fé e não uma possibilidade efetiva, a política só pode ser repudiada.

O Governo prometeu empenhar-se em fazer o país “sair desta situação, empobrecendo”. Cumpriu uma parte: a do empobrecimento. Os dados esta semana publicados pelo INE relativos a 2012 mostram, de facto, como o Governo honrou a promessa de empobrecer a grande maioria dos portugueses. Há neste relatório duas informações essenciais sobre o que é o país depois do choque de empobrecimento prometido e cumprido.

A primeira é a de que a austeridade agravou e espalhou a pobreza. Um milhão e cem mil pessoas – mais 200 mil que em 2010 – vivem em condição de pobreza severa (ou seja, não conseguem satisfazer as suas necessidades mais elementares). Um em cada quatro portugueses é pobre – uma subida de 25% em apenas 4 anos. A taxa de risco de pobreza – correspondente a 60% do rendimento mediano, o qual desceu significativamente descendo por isso a fasquia de contagem da pobreza – subiu mesmo assim, dramaticamente, de 17,9% em 2009 para 24,7% em 2012. Sabemos bem que por trás destes números estão vidas concretas de indizível sofrimento e indignidade: ter que escolher entre os medicamentos que se tomam e os que não se podem comprar, não ter dinheiro para manter a casa minimamente aquecida, não ter meios para comprar uma peça de roupa, não ter dinheiro para que um filho possa estudar, etc. etc. Quarenta anos depois do 25 de abril, este país que o INE faz ver ao espelho volta a ver as mesmíssimas imagens que a democracia primeiro e a Europa depois fizeram crer que estariam banidas para sempre.

Mas os números do INE revelam-nos uma segunda imagem do país sob as políticas de austeridade. A diferença entre o rendimento dos 10% mais ricos e dos 10% mais pobres passou de 9,2 vezes em 2009 para 10,7 vezes em 2012. Os números são como o algodão: não mentem. E neles vai clara a demonstração de que houve uma parte do país a quem a promessa governamental de empobrecimento não se aplicou de todo. Há notoriamente mais pobres em Portugal, há uma mancha social muito mais ampla afundada na pobreza quotidiana e na falta de horizontes de saída dela. Mas o alastramento e o agravamento da pobreza da grande maioria reverteram a favor de uns poucos muito ricos, sempre incólumes aos sacrifícios.

Da grande promessa programática de 2011 – empobrecer o país para o “tirar desta situação” – o Governo cumpriu a parte mais fácil: empobrecer os pobres e trazer para a pobreza os remediados. Aos ricos ajudou a que ficassem mais ricos. E, mais grave que tudo, sem que no fim se tire o país da situação que justificou isto tudo – a dívida agigantou-se e a capacidade de a pagar diminui na mesma proporção. A resposta do Governo a este diagnóstico do INE será a confirmação, já anunciada, da natureza permanente dos cortes nas pensões e reformas. Ou seja, à vulnerabilidade da pobreza o Governo responde com a eternização dessa vulnerabilidade nos segmentos sociais mais frágeis.

É séria uma coisa assim? É realista? É razoável? Ou realista, razoável e sério é antes ouvir o clamor dos pobres e centrar toda a política na criação de um horizonte de mudança que assuma o quotidiano destas tantas centenas de milhares de pessoas como a única prioridade?


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
austeridade    empobrecimento    crise