Ao fim de décadas de debate, torna-se patente que a acção pedagógica promovida pelas entidades do mundo estudantil não tem surtido efeitos palpáveis.
Não sei se é ou não verdadeira a afirmação de Vasco Pulido Valente de que a cultura “praxista” varia “na proporção inversa da qualidade académica da instituição” (PÚBLICO, 25/1/2014), mas, como é de regra, a imitação é sempre pior do que o original e é talvez por isso que os casos mais graves de abusos neste domínio têm surgido em instituições privadas e com pouca tradição académica (no verdadeiro sentido da expressão).
Sabemos bem que “o original” – no caso, a Universidade de Coimbra – não é exceção na tendência geral de massificação dos consumos estudantis. Mas foi sobretudo a partir do boom de institutos e universidades privadas de ensino superior (na década de 1980) que começaram a florescer pelo país as cenas caricatas e comportamentos humilhantes exercidos pelos mais velhos sobre os “caloiros”, onde se confunde o ritual de passagem com a masoquista submissão ao abuso, onde se confunde “tradição” com o despotismo pessoal mais arbitrário. Os observadores e analistas têm sido unânimes a condenar esse processo de adulteração e de excesso onde o mote é a violência e que tem suscitado diversos casos lamentáveis e algumas mortes, de um modo ou de outro, relacionadas com a “praxe” académica. Com maior ou menor gravidade, os casos sucedem-se anualmente.
Há cerca de dois anos, publiquei neste jornal: “Nos últimos dias, foi notícia mais um caso, em Coimbra, envolvendo duas jovens estudantes de Psicologia, que terão sido agredidas por recusarem alinhar nos castigos da ‘praxe’ e a assinar uma declaração antipraxe. Na sequência da denúncia, o Conselho de Veteranos da Universidade de Coimbra declarou a suspensão da ‘praxe académica’ por tempo indeterminado. Porém, logo no dia seguinte assisti, junto a uma cantina, a mais um exercício humilhante em que um estudante mais velho aplicava a praxe a duas raparigas, estendidas no chão a fazerem flexões de braços (2/4/2012). As alarvices e os abusos começam na semana de receção ao caloiro, passam pela Festa das Latas e vão até à Queima das Fitas, o seu pico mais alto. Em qualquer lugar público, as cenas sucedem-se: as/os ‘doutoras/es’ a dar ordens a grupos de ‘caloiras/os’ que se perfilam como na tropa, olhando para o chão em obediência servil; depois, colocam-se ‘de quatro’ e gritam em coro ‘sou caloira e sou burra!’ (cena em Coimbra, 1/3/2012).
Em Leiria, no centro da cidade, uma fila de caloiras deitadas no chão rebola-se perante os gritos militaristas das suas superioras (cena observada a 7/3/2012). A postura machista, marialva e de subalternização da mulher é, aliás, um traço marcante da atual cultura estudantil, para a qual eles e elas contribuem alegremente, exaltando a hierarquia e naturalizando as mais diversas formas de arrogância e abuso de poder” (PÚBLICO, 6/4/2012).
Mais do que condenar os “abusos” ou apelar à “proibição” dessas práticas, importa conhecer melhor a razão da sua multiplicação para, depois, se exercer alguma ação corretiva (pedagógica ou repressiva, ou ambas). No plano subjetivo, o diagnóstico está feito e o último artigo de José Pacheco Pereira sintetiza bem a lógica de poder simbólico que anima a cultura praxista: “Ao institucionalizar a obediência aos mais absurdos comandos, a humilhação dos caloiros perante os veteranos, a promessa era a do exercício futuro do mesmo poder de vexame, mostrando como o único conteúdo da praxe é o da ordem e do respeito pela ordem, assente na hierarquia do ano do curso. Mas quem respeita uma hierarquia ao ponto da abjecção está a fazer o tirocínio para respeitar todas as hierarquias. Se fores obediente e lamberes o chão, podes vir a mandar, quando for a tua vez, e, nessa altura, podes escolher um chão ainda mais sujo, do alto da tua colher de pau. És humilhado, mas depois vingas-te” (J.P.P., PÚBLICO, 25/1/2014).
Ao fim de décadas de debate e de um constante diálogo que temos mantido com os estudantes (praxistas e antipraxistas) de Coimbra, torna-se patente que a ação pedagógica promovida pelas entidades do mundo estudantil (a começar pelo Conselho de Veteranos) não tem surtido efeitos palpáveis. Muitos estudantes alegam que os abusos nada têm a ver com a “verdadeira” praxe, que é integradora e se oferece como oportunidade de socialização dos caloiros, sendo que muitos destes argumentam que o ritual da praxe é onde se geram as amizades mais sólidas. Em favor dessas opiniões, importa reconhecer que nem todas as praxes são violentas e humilhantes, e que continuam a existir brincadeiras inteligentes, que veiculam uma irreverência juvenil saudável que importa preservar no meio estudantil. Receia-se, porém, que esses casos sejam hoje a exceção e que o processo de perversão seja imparável. Faz sentido uma proibição pura e simples? Creio que não. Seria possível instituir uma receção amigável ao caloiro? Seria, mas para isso era preciso que as universidades tivessem disponibilidade e condições para intervir mais ativamente neste campo; e, acima de tudo, era preciso que as estruturas associativas dos estudantes trabalhassem nesse sentido e rompessem com a lógica de poder e de ambição individual que as aprisiona (que no fundo se ligassem à realidade que representam em vez de se satisfazerem em ser eleitas por dez ou vinte por cento dos estudantes).
Quando o debate académico é cada vez mais anulado pela “tecnoburocracia” reinante; quando é a tutela, as universidades e as próprias associações que promovem a passividade, a concorrência e o carreirismo; quando, enfim, as instituições e o poder rejeitam a reflexão crítica, a cultura democrática e ostracizam as ciências sociais (vocacionadas para pensar criticamente a sociedade), não podemos surpreender-nos perante o triunfo da mediocridade moral e da vilania mais abjeta. É, pois, nos condicionalismos estruturais associados ao poder político e ao mercado que reside a génese de uma mentalidade que perverte a tradicional missão formativa, científica e cultural da Universidade, e que estimula o hedonismo e a apatia cidadã da atual geração estudantil, onde proliferam as praxes e as suas perversões.