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03-01-2014        Diário de Notícias

Talvez o efeito maior do momento neoliberal da longa globalização tenha sido o anátema quase total lançado sobre o valor político da autodeterminação. E talvez o efeito maior da atual crise desse momento seja, em quase todas as regiões do mundo, o retorno a esse valor.

Os dois lados da ambivalência política da globalização – feita quer de integração dos mercados financeiros quer de mundialização das lutas pelos direitos humanos – juntaram-se, a partir da década de oitenta, na produção de um discurso crítico da soberania dos Estados, remetida para a categoria de resíduo político. Vivemos os últimos trinta anos sob o manto dessa desconsideração dos Estados e das suas soberanias, tidas como obstáculos quer ao pleno funcionamento dos mercados quer ao pleno cumprimento de padrões de boa governação amigos dos direitos e da dignidade.

O resultado foi a súbita desvalorização do conceito de autodeterminação no debate político internacional. O que fôra a grande referência dos movimentos de libertação do pós-guerra, animando uma geração de lutas que mudou por inteiro o mapa do mundo, saiu quase totalmente de cena, castigada ora por supostamente camuflar situações de estatalidade inviável, ora por servir de bandeira a mobilizações desalinhadas com o primado do mercado mundial. Tomando esse alinhamento como critério, louvou-se efemeramente a retórica de autodeterminação presente nas revoltas ocorridas no Leste europeu ou no mundo árabe, ao mesmo tempo que se eliminava a palavra – e o seu conteúdo político transformador – do vocabulário aplicado à América Latina ou a África, por exemplo.

Para preencher esse vazio alguns crentes na regulação do momento neoliberal da globalização sugerem a hipótese de um constitucionalismo global. E, generosos, põem no centro desse constitucionalismo global a uniformização de um catálogo de direitos fundamentais e dos cânones do Estado de Direito. Sucede, porém, que a vida não lhes dá razão. O constitucionalismo global efetivamente existente, não o dos livros e das conferências mas o da política concreta que está aí, é afinal o da constitucionalização do próprio neoliberalismo. Veja-se, no espaço da União Europeia, o valor constitucional prático que se pretende conferir à “regra de ouro” do equilíbrio orçamental para a atirar quer contra os governos que decidam seguir uma orientação de intervenção contra-cíclica, por exemplo, quer contra os próprios tribunais constitucionais nacionais. Veja-se, em escala mais ampla, o que resultará da aprovação da Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (vulgo, tratado de comércio livre entre a União Europeia e os Estados Unidos), com os investidores (como a Monsanto, a Philip Morris ou a Microsoft) a poderem processar os governos nacionais diante de um tribunal ad hoc se estes adotarem legislações nacionais que aqueles considerem prejudiciais para a sua liberdade de negócios. Este constitucionalismo global efetivo que rouba toda a autonomia – incluindo a de determinar o conteúdo das leis – aos Estados e aos povos que eles é suposto representarem é por isso mesmo um ataque letal à democracia.

A Europa do Sul está a trazer de volta a autodeterminação para o centro da política. Porque é aqui e agora que os efeitos do discurso encantatório da integração política e económica se estão a exibir em toda a sua perversidade. Aqui, integração e perda da autodeterminação estão a ser sinónimos e os dois estão a significar austeridade sem fim e desdém da democracia. Unir os povos do Sul da Europa para resgatar a nossa autodeterminação contra o constitucionalismo global ordoliberal que nos amarfanha é hoje um imperativo da democracia. Essa é a questão essencial das próximas eleições europeias.


 
 
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José Manuel Pureza



 
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