Comecemos pela ideia tão difundida de que não há alternativa à política de austeridade. Significa isto que não há uma concepção alternativa de austeridade? Convido-vos a recuar 38 anos e a consultar um dos documentos mais notáveis do ciclo político que se iniciou em 25 de abril 1974.
Refiro-me ao documento que ficou conhecido como Documento Melo Antunes (fevereiro de 1975), elaborado por um grupo de reflexão chefiado por Melo Antunes e que integrou, além de outros membros do III Governo provisório, o ministro da Economia Rui Vilar, o ministro das Finanças Silva Lopes e a ministra dos Assuntos Sociais Maria de Lourdes Pintasilgo. A sua leitura hoje causa arrepios quando se contrasta a seriedade, o sentido de Estado, a competência e o patriotismo daquele grupo da classe política num momento difícil do país com a mediocridade, a leviandade e a falência moral dos que hoje, num momento igualmente difícil, ainda que por razões bem diferentes, nos desgovernam.
Este documento dedica uma secção à austeridade. Passo a citar: “A recuperação e o relançamento da economia devem passar necessariamente por opções muito nítidas quanto aos ‘padrões de consumo’. A regra geral a seguir, nesta matéria, terá forçosamente de ser a da ‘austeridade’. Austeridade significará, antes de mais, uma muito maior sobriedade em consumos de luxo ou supérfluos. As camadas da população mais atingidas por medidas que venham a impor uma muito maior rigidez no acesso aos bens não essenciais ou pouco importantes serão as que até ao presente gozavam de privilégios ou benefícios inacessíveis à maioria da população. Significará, ainda, uma maior contenção na distribuição dos lucros das empresas e um esforço muito mais claro da iniciativa privada para a mobilização dos recursos financeiros disponíveis ou a obter para o investimento produtivo e a criação de empregos. Mas as necessidades de recuperação da economia portuguesa impõem, certamente, um alargamento das restrições a certos tipos de bens de consumo largamente generalizados. Isto exigirá uma grande compreensão e uma vontade muito clara de aderir ao projeto coletivo de reconstrução nacional. Com o termo austeridade quer se significar também, e essencialmente, a predominância do desenvolvimento dos consumos coletivos face aos consumos individuais. Uma política de consumos que privilegie os equipamentos sociais (transportes coletivos, escolas, hospitais, habitação social, esquemas de segurança social, etc.) compensará em grande medida as classes trabalhadoras das carências sentidas no plano individual”.
Naquela época era imperioso o relançamento da economia e era necessário fazer sacrifícios. Logicamente, a austeridade devia ser pedida a quem a podia sofrer com menos sacrifício, e esses eram em primeiro lugar as classes sociais mais abastadas. Claro que a austeridade tocava a todos e para que se realizassem poupanças imperiosas, os consumos individuais deveriam dar lugar aos consumos coletivos. Estavam aqui em embrião as políticas sociais que se viriam a concretizar nas décadas seguintes e com elas o padrão de sociabilidade democrática que nos trouxe até aqui. As condições políticas de então não permitiram que o documento tivesse qualquer eficácia no curto prazo. Veio, porém, a tê-la mais tarde e acabou por conformar os fundamentos do pacto constitucional que então selou a convivência pacífica entre portugueses nos últimos quarenta anos. Tal como o documento Melo Antunes visou travar o radicalismo de esquerda, precisamos hoje de um documento que trave o radicalismo de direita.
Parto do Documento Melo Antunes e da conceção alternativa da austeridade que propõe. Estamos no euro, qualquer saída só é previsível em cenário de catástrofe e, no entanto, nada nos será oferecido no curto prazo pela UE que permita o relançamento da economia com justiça social. Na constância das políticas atuais é tão dramático continuar no euro como sair do euro. As alternativas têm de ser encontradas a nível nacional. Se bem executadas, serão estas que amanhã poderão forçar a EU a fazer o que nunca fará de motu proprio. Portugal tem de dar sinais convincentes de que não está disposto a manter-se no euro a qualquer preço. Por exemplo, se como pretende o tratado orçamental, a dívida tiver de ser reduzida até 60% do PIB nos próximos vinte anos, isso significa que, se não houver corte ou redução da dívida, o nosso sistema nacional de saúde e da educação pública terão de ser totalmente desmantelados, algo que os portugueses consideram inaceitável e devem proclamá-lo alto e bom som.
Segundo os princípios do Documento Melo Antunes, adaptados ao tempo atual, a austeridade significa apertar o cinto a quem menos dói, ao capital financeiro e aos titulares de riqueza, sobretudo àqueles cujo rendimento e poupança serve, não para investir produtivamente, mas para aplicar em riqueza financeira. Assim:
1 — É lançada uma sobretaxa temporária sobre a riqueza financeira dos super-ricos e sobre os lucros do sector bancário destinada a reduzir o esforço do serviço da dívida, libertando fundos para investimento público e privado. Sendo única, esta sobretaxa, justificada como emergência causada pela dívida, não alterará de forma dramática o comportamento dos investidores nem causará a fuga de capitais desde que o governo torne claro ser uma medida irrepetível.
2 — É adotado o sistema de tributação fortemente progressiva. Nos EUA nos anos 1940 e 1950, a taxa marginal de tributação do rendimento rondou os 90% para os rendimentos mais altos. A redução progressiva dessa taxa nas décadas seguintes teve apenas o efeito de concentrar a riqueza do país e em nada contribuiu para o crescimento económico, antes pelo contrário. Não precisamos de chegar a tanto. Basta que volte a ser claro que viver em democracia obriga a partilha tanto dos benefícios como dos sacrifícios. Em Portugal, esta medida pode revelar-se menos eficaz devido à fuga ao fisco por parte dos titulares de rendimentos mais altos, uma das grandes causas da injustiça fiscal do nosso país.
3 — Caixa Geral de Depósitos não é privatizada e deve transformar-se no que há muito devia ser, não um banco comercial como qualquer outro, mas um banco de investimento para pequenas e médias empresas. Convergente com este objetivo, tem-se vindo a falar da criação de um Banco de Fomento com fundos do QREN.
4 — Como são as classes mais baixas quem mais depende dos serviços públicos, são suspensas todas as políticas de transferência do sector público para o sector privado na educação e na saúde. E é revertida a legislação laboral que acabou com a contratação coletiva. O sistema norte-americano que se está a implantar entre nós não tem outro objetivo senão enfraquecer os sindicatos, um objetivo que consta dos documentos da ALEC (American Legislative Exchange Council), uma iniciativa do grande capital norte-americano para liquidar todos os obstáculos à acumulação capitalista, sejam eles os sindicatos ou a proteção ambiental. Nesses documentos, a medida central para a privatização da educação é o cheque-ensino.
5 — É recusada a introdução do sistema do plafonamento no sistema de pensões, o que para além de muito arriscado financeiramente, não é necessário se o sistema de contribuições for alterado e se todo o sistema de Segurança Social deixar de estar sob pressão de altas taxas de desemprego.
6 — A banca nacional, que tão beneficiada tem sido tanto em tempos de bonança como em tempos de crise, deve ser obrigada a financiar a baixo custo a dívida pública, permitindo assim que a poupança interna seja posta mais diretamente ao serviço do relançamento da economia e do país. Esta medida deve ser proposta, consoante a conjuntura, em alternativa ou em conjunção, com a solicitação do corte ou redução da dívida.
Estas medidas criam uma tensão com a nossa permanência no euro e devem ser assumidas como tal, ou seja, como condições para a nossa permanência no euro sem suicidar o país. Portugal só pode afirmar com consistência as suas condições para continuar no euro se tornar claro quais as medidas que tomará para garantir a continuidade do país com dignidade, o bem supremo, se tais condições não existirem.