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14-11-2013        Visão

O sistema judicial tem estado frequentemente no fio da navalha mas a desesperança que  hoje  o  atinge  é  mais  profunda  e  coloca  em  causa  os principais  pilares  do  sistema  de  justiça  num  Estado  democrático: independência dos juízes, autonomia do Ministério Público e confiança social. São três as principais armadilhas: troika, tibieza e tensão.

A Ministra da Justiça anunciou recentemente que tinha já esgotado "todas as medidas do Memorando da troika". Não admira que o desenvolvimento das reformas tenha dispensado estudos prévios e uma monitorização credível, uma vez que a  agenda  e  os  termos  de  referência estavam determinados, faltando apenas executá-los. O chamado Guião para a  Reforma  do  Estado  vai  pouco  além  do  Memorando.  A única  inovação reside "na  abertura do Governo para reformar a arquitetura institucional do sistema judicial". Este é um anúncio preocupante. 

De que fala o Governo? Do  fim  do  Tribunal  Constitucional,  transformado  em  perigosa  "força  de bloqueio"?  Da  redução  da  autonomia  do  poder  judicial?  E  por  que  é necessário  reformar  a  arquitetura do  sistema  judicial?  Quais os  bloqueios subjacentes?  Há  mais  de  duas  décadas,  produzimos  no  Observatório Permanente da Justiça estudos de avaliação sobre o desempenho funcional do sistema de justiça, identificando bloqueios e apresentando propostas de solução.  A arquitetura do sistema judicial nunca foi, nem por nós, nem por outros estudos, identificada como um bloqueio à eficiência e à qualidade da justiça.  Sá  Carneiro,  Salgado  Zenha,  Almeida  Santos,  Cunha  Rodrigues, Laborinho Lúcio, entre outros, desenharam  um sistema de justiça, elogiado internacionalmente  e  inspirador  de  outros  países,  capaz  de  garantir  a autonomia  e  independência  dos  tribunais,  como  órgãos  de  soberania.  A degradação  e  a  descredibilização  que  a  justiça  vive  não  resulta  da  sua arquitetura, mas sim de outros fatores que debilitam cada vez mais o acesso ao direito e à justiça e a organização e funcionamento dos tribunais.  A  justiça  é  um  bem  público  que  deve  estar  ao  serviço  do aprofundamento da democracia e  do desenvolvimento económico e social.

A  justiça  portuguesa  está  longe  de  cumprir  este  objetivo.  As  reformas anunciadas,  além de tíbias,  não  só não  ajudam a aproximar a justiça desse objetivo, como têm o potencial de aprofundar   o  afastamento.  Temas como o  acesso  ao  direito  e  à  justiça,  recrutamento,  formação  e  avaliação  e progressão da carreira dos magistrados, qualidade e transparência da justiça ou  estão  ausentes  ou  são  tratados  numa  perspetiva  puramente  financeira. Estamos  num  tempo  de  recuo,  de  construção  demagógica  de  eficiência, como  a  tão propagada descida das pendências da ação executiva ,  que tanto terá  impressionado  a  troika,  quando  todos  sabem  que  se  tratava,  na  sua grande maioria, de falsas pendências.

Como diz Rui Cardoso, do Sindicato dos  Magistrados  do  Ministério  Público,  de  processos  que  "já  estavam mortos".  A  carga  ideológica  neoliberal  na  reforma  da  educação  e  da segurança  social  não  é  transponível  na  sua  plenitude  para  a  justiça,  mas pode  armadilhá-la,  tornando-a  ainda  mais  refém  do  seu  labirinto, deslegitimando-a  cada vez mais aos  olhos dos cidadãos. Não é por acaso que o poder político não se cansa de salientar as qualidades de eficiência da arbitragem, uma justiça privada de elites.

O  sector  da  justiça  volta,  menos  de  10  anos  depois,  a  ser  foco  de forte  tensão  social,  com  representantes  das  estruturas  sindicais  dos magistrados  e  funcionários  a  admitirem  a  realização  de  greves.  O  que diferencia este momento de outros é que a tensão institucional não é entre as instituições do judiciário, mas entre estas e o poder político. Os cidadãos não podem  olhar  para  esta  tensão  apenas  pelo  prisma  mediático: o descontentamento com os cortes salariais. O conflito mostra a preocupação com a degradação das condições de funcionamento da justiça, com as ameaças à autonomia e à independência do judiciário, com o afastamento dos agentes judiciais do processo de reforma. Os tribunais judiciais ainda gozam de um capital de expetativas positivas que não podem desperdiçar. E os cidadãos precisam, mais do que nunca, do sistema de justiça, que não podem deixar de defender.


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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