Invariavelmente, os países que vivem sob o jugo dos “doadores” inventam um país que caiba nos impressos de autorização de despesa de quem tem o dinheiro. Inventam-se democracias, inventa-se liberdade de expressão, inventa-se pluralismo partidário, inventa-se desenvolvimento. E os doadores fingem acreditar em tudo isso. Porque enquanto o fingimento valer, os negócios que mais lhes convêm far-se-ão. Fingindo – e mantendo a mandar os seus homens de mão – os doadores acumulam vantagens económicas e políticas. Fingindo – e prestando vassalagem aos seus mandantes – as elites locais enriquecem à custa de povos exangues.
Em Portugal, chegámos àquele tempo em que a satisfação dos delírios dos credores é tão impossível que só mesmo a mentira mais retinta os pode servir. O orçamento para 2014 é esse cínico exercício de mentira, em que ninguém acredita – nem a troika, nem o Governo, nem as pessoas – que só serve para falar de um país a fingir. Mas essa mentir disfarça a estratégia da verdade deste orçamento: enquanto o fingimento valer, o assalto a tudo o que é público e a punição dos que o servem será sem limite.
A mentira deste orçamento é feita de muitas mentiras. Refiro três. A primeira é a de que a diminuição da taxa de IRC para 23% determinará uma perda de receita fiscal de 70 milhões de euros. Sabendo que os cálculos da comissão que estudou esta reforma apontam para uma perda de 220 milhões de euros, as contas do orçamento só seriam válidas se se pressupusesse que haverá um aumento dos lucros das empresas tributáveis em IRC na ordem dos 600 milhões de euros, para o que teria que haver um aumento fabuloso da produção e das vendas dessas empresas. Só acredita quem quer. Segunda mentira: o orçamento aponta para um arrecadamento de 100 milhões de euros com a penalização das pensões de sobrevivência, baseando-se na existência de 25 mil pessoas viúvas que acumulam pensões acima dos 2 mil euros. Os números não batem certo, por mais que se estique a taxa de tributação da viuvez. Só acredita quem quer. Terceira mentira: o cenário macroeconómico que serviu de base ao orçamento prevê um crescimento do produto na casa dos 0,8%, não obstante a previsão de queda de 2,8% no consumo público e da manutenção do desemprego nuns dramáticos 17,7%. A isto acrescenta a invenção iluminada do crescimento (!) do consumo privado, mesmo depois dos cortes brutais nos salários e nas pensões. As exportações salvar-nos-ão, portanto. Só acredita quem quer.
Mas a mãe de todas as mentiras é a de que, cumprido este orçamento, chegaremos enfim à redução drástica do défice e da dívida. Nisto já só acredita quem não quiser ver a realidade. Basta olhar para o caminho que fomos forçados a fazer: em 2012 o défice era de 10.600 milhões de euros, as medidas de austeridade foram de 5.300 milhões, o défice desceu para 9.700 milhões. 5.000 milhões de sacrifícios para menos de 1.000 milhões de abatimento do défice.
A confirmar estas mentiras, há verdades fortes neste orçamento. 82% dos cortes serão suportados pelos funcionários públicos e pelos reformados enquanto que aos bancos e aos monopólios energéticos “será pedido um contributo” (pontual, claro) de 4% do ajustamento. Entretanto pagaremos 7.200 milhões em juros da dívida e aumentaremos para 1.650 milhões os gastos em parcerias público-privado. Mais do que o que gastamos em saúde e em ensino. Onde estão afinal as gorduras?