Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
11-10-2013        Diário de Notícias

As palavras são do Miguel Portas, escritas em 2009: "A sorte para os danados só pode ser uma sorte danada. Muitos morrem, pois morrem. Mas não conseguiram muitos mais chegar à outra margem? Não suplantaram eles o medo da travessia nocturna, as correntes imprevistas, as lanchas policiais e os controlos de terra? Com ele não será diferente."
Para os mais de 300 somalis e eritreus que morreram sexta-feira à vista de Lampedusa a sorte danada não veio. Foi diferente. Ou melhor, foi igual a tantas outras faltas da sorte danada. Morreram porque quiseram sinalizar pelo fogo que havia um ponto de vida a esvair-se naquele mar danado. Os que, dos seus barcos, viram as labaredas, lembraram-se da xenófoba lei Bossi-Fini e ignoraram-nos para não serem punidos por darem ajuda a imigrantes sem papéis. Morreram mais do que é normal, número danado. E só por isso – e porque um Papa desassombrado disse a palavra ‘vergonha’ para denunciar ‘a indiferença para com os que fogem da escravatura, da fome, para encontrar a liberdade e encontram a morte’ – é que a falta de sorte veio para as parangonas. Mas logo regressou a normalidade: com os cadáveres ainda por enterrar, a justiça italiana acusou os 114 sobreviventes do crime de imigração ilegal que os fará pagar multas de 5 mil euros antes de serem expulsos de volta ao inferno e os Estados europeus não responderam à solicitação da Comissão de dotações económicas que permitam montar um mecanismo de resgate de imigrantes náufragos no Mediterrâneo. Azar danado…

Tem razão Francisco, o Papa: esta é uma Europa de vergonha. Em nome de um suposto salvamento humanitário, junta-se de peito feito aos semeadores da guerra do outro lado do mar. Como na Líbia, de onde fugiram, desde o início dos combates que a intervenção da NATO só agravou, mais de 600 mil pessoas. Espalharam-se por toda a região, desde o Egito ao Chade, passando pelo Mali ou a Argélia. Todos países pobres que, no entanto, tiveram a dignidade de manter as suas fronteiras abertas para acolherem os refugiados fugidos à guerra. Ou como no Iraque, de onde fugiram 5 milhões de homens e mulheres, refugiando-se em países vizinhos onde, sempre em nome do salvamento humanitário, a Europa se disponibiliza para fazer guerras (como na Síria) que alimentam novas fugas em massa para novos purgatórios. Vidas danadas. A Europa, essa, fecha-se, paga aos governos da orla sul deste mar danado para travarem os que querem vir à busca de vida melhor do lado de cá, ao mesmo tempo que adota leis criminalizadoras de quem não trouxe no bolso as certidões e os vistos na hora de fugir aos tiros, à fome ou à pobreza sem fim.

Sabemos assim o que vale a liberdade de circulação na Europa. Vale para os capitais e para quem os detém. Já para os pobres que, do outro lado do mar, dão as poupanças de uma vida a agenciadores corruptos para comprar esse sonho ela não é senão isso: sonho proibido. Que logo vira pesadelo danado.

25 mil mortos na viagem de uma vida, nos últimos vinte anos, são o rosto desse pesadelo. Mortos de frio, de asfixia, de afogamento, de assassinato. Tudo por causa de uma terra prometida que vira terra danada para os sobreviventes que a alcançam e são depois roubados, violados ou mantidos no cárcere da prostituição forçada. Uma Europa que olha para Lampedusa e responde com polícia é estúpida e cobarde. Porque sabe que não há cortejo de naufrágios que demova um jovem condenado a viver na rua ou a trabalhar em regime de escravatura para ter um prato de comida por dia de tentar a sorte. Mais falta dela não terá, essa é a sua única certeza. Danada.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
Lampedusa    Europa    imigrantes    mediterrâneo