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20-09-2013        Diário de Notícias

Agora são os dias em que se veem e ouvem nas ruas da minha cidade – e de muitas outras cidades do país – grupos que invadem o espaço público gritando alarvidades, macaqueando encenações que misturam militarismo e deboche ou exibindo em cortejos e em performances localizadas rituais de humilhação coletiva e de rebaixamento. Chamam-lhe praxe. E em nome desse nome, a minha cidade - e muitas outras cidades do país – tolera o intolerável: a indignidade.

A praxe é uma fotografia da nossa realidade. É, em primeiro lugar, uma fotografia da universidade. A velha universidade elitista, fechada numa diletante torre de marfim, deu lugar a uma universidade socialmente aberta e massificada em interação com a sociedade no seu todo. Mas os efeitos dessa democratização da universidade no imaginário social esbarraram numa governação da economia e do país que fez dos recibos verdes e da desqualificação do trabalho seus mandamentos supremos. A ligação automática entre universidade e prestígio social tornou-se um mito. A praxe é a resposta boçal a essa perda da capacidade de garantir ascensão social pela universidade. O ritual da entrada no mundo dos sonhos ficou ritual vazio, porque o mundo dos sonhos é pura quimera até se revelar crueldade pura no desemprego, no call center ou na caixa do supermercado. O que aspirava a ser liturgia de início de caminho de promoção tornou-se em cerimonial de integração igualizadora numa sociedade sem exigência e sem expetativas. Por isso os “caloiros” gritam, sob a batuta de “doutores” tão marciais quanto ignorantes, que são umas “bestas”, uns “vermes” e quejandos. E são-no realmente para a economia e a sociedade. Ao ponto de o Governo lhes sugerir a emigração como horizonte de futuro. A praxe é a carnavalização pimba da desesperança que hoje habita a universidade.

A praxe é, em segundo lugar, uma fotografia da nossa sociedade. Ela mostra, concentrada no microcosmos da universidade, uma sociedade que cultiva com apavorante facilidade o sexismo, a obediência acrítica às ordens gritadas, a homofobia, a hierarquização social rígida e indiscutida e a apologia do vexame e da desqualificação como códigos do relacionamento social. Uma sociedade sem direitos humanos nem pensamento crítico – eis a sociedade que a praxe revela. Com a agravante de ser uma sociedade convencida da sua bondade integradora.

Se a praxe é uma grotesca fotografia, são as realidades que ela retrata que precisam de ser mudadas. Mudar a universidade, desde logo, assumindo-a como lugar de conhecimento e de ciência e, por isso, de culto da permanente insatisfação com o que está e com o que se herdou, da contínua superação da incultura, do combate à indolência que é a apologia acrítica de todas as tradições inquestionadas. Uma universidade assim, em que tecnologias e humanidades dão as mãos no desenvolvimento de um pensamento crítico, não forma para uma integração obediente em empregos desqualificados e sem direitos, forma sim cidadãos inquietos e exigentes. E isso torna-a perigosa aos olhos dos poderes estabelecidos. Porque essa universidade, em que os estudantes exijam horizontes em vez de exibirem boçalmente o seu vazio, questionará até à raiz os mecanismos que geram nela e fora dela o autoritarismo, a discriminação, o sexismo e toda a rasquice elevada a modo de vida triunfante. Ou seja, mudará a sociedade.


 
 
pessoas
José Manuel Pureza



 
temas
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