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08-06-2013        Público

Mário Soares organizou recentemente um encontro alargado de partidos, movimentos e personalidades, sobretudo oriundos da esquerda, sob o lema Libertar Portugal da Austeridade. Pela nossa parte, consideramos que a dita reunião teve um enorme valor simbólico, mesmo se reconhecemos as dificuldades em passar daí a uma convergência política. E pensamos também que vale repensar os motivos históricos (porquê?) para uma convergência, ou para a falta dela, bem como os objetivos (para quê?) e os processos (como?) que, no terreno social e político, a tal podem conduzir.

Há vários motivos para a falta de convergência entre as esquerdas. Primeiro, há a memória histórica dos tempos do PREC, nomeadamente as derivas hegemónicas dos comunistas, e da guerra fria, com o alinhamento da esquerda radical com as "democracias populares". Tais motivos são hoje irrelevantes: as "democracias populares" já não servem de modelo a ninguém (mesmo se o BE foi muito mais longe do que o PCP na crítica do totalitarismo soviético e na adoção do património do liberalismo político), e a guerra fria terminou há muito. Segundo, sabemos bem da importância decisiva dos prolongamentos das clivagens partidárias na sociedade civil organizada, designadamente no campo sindical. E aí a truculência das relações entre a CGTP e a UGT começa desde logo no contexto de consolidação da primeira e simultaneamente é a razão de ser do surgimento da segunda, isto é, referimo-nos ao clima de crispação e de luta sociopolítica do PREC (1974-1975) em que à iminente e "perigosa" hegemonia de uma central considerada "radical" (e ao serviço do PCP) se opôs a fundação de uma outra corrente considerada "moderada", mas, na realidade, predisposta a assinar (quase todos) os acordos com o patronato, nomeadamente os que a sua rival recusava, funcionando por seu lado sob a dupla égide do PS e do PSD. Ainda hoje esta divisão perdura e dificulta a convergência das esquerdas, embora a recente aproximação entre a CGTP e a UGT abra uma janela de oportunidade. Terceiro, temos as diferenças nas orientações face às políticas: entre um PS mais próximo do centro-direita do que da esquerda radical, nomeadamente em matéria de política europeia. Não há dúvida que tais diferenças existem e que são um obstáculo a entendimentos. Mas há que as relativizar. Primeiro, há na Europa vários exemplos de entendimentos mesmo com distâncias ideológicas entre os sociais-democratas e a esquerda radical equivalentes às que encontramos em Portugal. Segundo, o PS é que está muito mais alinhado ao centro do que a sua família política na Europa; a esquerda radical portuguesa (sobretudo o BE) não é propriamente muito mais radical do que a sua "família comunista e pós-comunista". Terceiro, se é verdade que há uma forte inflexão nacionalista no PCP, também é conhecido o "europeísmo crítico" do BE. E alguém duvida de que a Europa precisa desesperadamente de uma boa dose de "europeísmo crítico"? Quarto, o movimento do PSD para direita neoliberal radical tornou as esquerdas menos distantes entre si.

Resta responder às questões "como" e "para quê?" Já antes desta brutal crise, sabíamos que tal convergência entre as esquerdas poderia contribuir para reduzir as desigualdades, num dos campeões das mesmas na UE (et pour cause), e para uma maior clareza das alternativas, num país onde as alianças preferenciais do PS com as direitas o tornam demasiado parecido com estas. Mas no presente contexto uma aliança de esquerdas deve servir também para reabilitar a democracia aos olhos dos portugueses, perante um Governo que está a dirigir o país sem mandato político (para a liquidação do Estado social que está a empreender) e, portanto, a desvalorizar o papel das eleições. E deve servir também para defender os serviços públicos perante uma direita radical que parece não querer deixar "pedra sobre pedra". E deve servir ainda para estimular o emprego e o crescimento económico, nomeadamente pela partilha de trabalho/redução de horários (sem custos para as empresas), por mais investimento e por uma suavização significativa da austeridade. Claro que resta a questão da "denúncia" (BE) vs. "renegociação" (PS) do memorando, acompanhada da renegociação da dívida: aqui como noutros pontos, a aproximação entre PS e BE parece mais fácil do que com o PCP ("rasgar o memorando"). Em qualquer caso, deve alicerçar-se no sentir maioritário dos portugueses/na democracia: uma sondagem recente (IDEFF) mostrava que 41,5% dos inquiridos defenderam a "denúncia do memorando", 41% "a renegociação" e apenas 10,8% entenderam que o acordo deve ser cumprido. Claro que algumas destas questões extravasam a divisão esquerda-direita, mas dificilmente se compreenderia que a direita que tanto tem combatido a Constituição e o Estado social, e governado sem mandato, fosse logo a seguir reciclada para um Governo liderado pelo PS: é uma questão de sanidade. E os sindicatos e os novos movimentos sociais poderão também ter um papel-chave numa tal solução de convergência. É a nova reaproximação entre reivindicações materiais e imateriais que pode fortalecer a pressão social e levar os novos movimentos que lutam pelo emprego e contra a precariedade a ganharem peso e com isso obrigar a ações conjuntas das duas grandes centrais sindicais sob o impulso de uma sociedade civil cada vez mais impaciente e desejosa de novas linguagens, propostas e protagonistas.


 
 
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Elísio Estanque



 
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