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26-04-2013        Diário de Notícias

Façamos jus à utilidade da palavra mais badalada nos últimos tempos: a luta política é, mais que tudo, uma disputa de narrativas. Não há políticas "mais exatas", "mais eficientes" ou "mais rigorosas" que outras por natureza. O que há é visões da realidade presente e futura em contraste entre si, construções divergentes da ordem social (da que está e da que deve estar). E é sempre em nome desse contraste, em nome dessa divergência - assumidamente ou disfarçadamente - que clamamos "exatidão", "eficiência" e "rigor" para as políticas que defendemos.

A esta luz, toda a polémica dos últimos dias em torno da bíblia do neoliberalismo sobre a correlação entre dívida e crescimento económico dos países - o afamado "This time is diferent", dos economistas Reinhart e Rogoff - corre o risco de passar ao lado do que é verdadeiramente essencial. Naquele trabalho e em dois artigos de aprofundamento amplamente citados na academia e nas esferas de decisão de política económica, Reinhart e Rogoff defendem a tese de que uma dívida pública acima dos 90% do PIB está invariavelmente associada a diminuições sensíveis da taxa de crescimento. Este raciocínio, supostamente estribado em fundamentação empírica exaustiva e irrepreensível, tem animado os cruzados do discurso do anti-endividamento a acusar a dívida dos países europeus e dos Estados Unidos de ser a primeira causadora da recessão em que estamos mergulhados.

Ora, o picante da história foi a descoberta de que Reinhart e Rogoff terão usado bases de raciocínio econométrico incompletas e erradas. Não fôra a sua má programação da folha Excel e o discurso seria fatalmente outro: onde se estabeleceu que países com um rácio de dívida/PIB de mais de 90% terão tido, entre 1946 e 2009, crescimento negativo, deveria estar a constatação de que tiveram afinal um crescimento médio de 2,2%. E tudo teria sido diferente. Teria? Não serei eu a desvalorizar a fraude científica presente neste caso e o que ela nos desafia a pensar sobre a responsabilidade social dos produtores de ciência: uma correlação estatística entre sobredívida e crescimento negativo mal estruturada e errada serviu de base a políticas concretas que desgraçaram entretanto, e continuam a desgraçar, milhões de vidas. Por muito menos condenaram-se autores de propostas assumidamente ideológicas aos velhos e novos indexes.

Mas convenhamos: muito para lá de um juízo sobre o fundamento rigoso das políticas, o que este caso traz à ribalta é a natureza ideológica marcada de um discurso que se reclama da exatidão e do rigor científico. O uso de uma sofisticação matemática cifrada para o comum dos mortais para dar autoridade a escolhas políticas é um recurso político como tantos outros. Em última análise, é sempre e só a escolha - de um lado, de um caminho, de uma visão das coisas - que ficará. Tudo o resto é ganga.

Muito provavelmente, a utilização de contratos swap por gestores de empresas terá sido elogiada nos meios académicos e na comunidade financeira como um gesto de génio. Equações, derivadas, algoritmos, integrais, com uma sofisticação inatingível salvo por cérebros superiores, terão sido usados para justificar o acerto de tal coisa. Congressos internacionais - certamente financiados por bancos de grande prestígio - terão ajudado a difundir que assim é que deveria ser. No fim, porém, ficou apenas a natureza política dessa escolha: a da cedência à vertigem do casino. Tudo em nome duma narrativa que tece loas à disciplina fiscal, à urgência de reduzir o défice e à retidão da austeridade. Com o dinheiro dos outros, claro.


 
 
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José Manuel Pureza



 
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crise    deficit    luta política