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29-12-2012        Diário de Notícias

A designação “estado social” tem várias genealogias. Foi com esta designação que Marcello Caetano tentou rebatizar o Estado Novo.  No virar do século XIX para o século XX foi a designação usada pelos socialistas para marcar a forma política do estado que faria a transição para o socialismo. É esta também a designação que consta da Constituição Portuguesa de 1976. Nas ciências sociais, e consoante as filiações teóricas, as designações mais comuns têm sido a de estado-providência ou estado de bem-estar.

É tendo em mente estas últimas designações que falo do estado social, um tipo de estado cuja melhor concretização teve lugar nos países europeus mais desenvolvidos depois da segunda guerra mundial. O estado social é o resultado de um compromisso histórico entre as classes trabalhadoras e os detentores do capital. Este compromisso foi a resposta a uma dolorosa história recente de guerras destrutivas, lutas sociais violentas e crises económicas graves. Nos termos desse compromisso ou pacto, os capitalistas renunciam a parte da sua autonomia enquanto proprietários dos fatores de produção (aceitam negociar com os trabalhadores temas que antes lhes pertenciam em exclusividade) e a parte dos seus lucros no curto prazo (aceitam ser mais fortemente tributados), enquanto os trabalhadores renunciam às suas reivindicações mais radicais de subversão da economia capitalista (o socialismo e, para o atingir, a agitação social sem condições face à injustiça da exploração do homem pelo homem). Esta dupla renúncia é gerida pelo estado, o que confere a este alguma autonomia em relação aos interesses contraditórios em presença. O estado tutela a negociação coletiva entre o capital e o trabalho (a concertação social) e transforma os recursos financeiros que lhe advêm da tributação do capital privado e dos rendimentos salariais em “capital social”, ou seja, num vasto conjunto de políticas públicas e sociais. As políticas públicas traduzem-se num forte intervencionismo estatal na produção de bens e serviços que aumentam a médio prazo a produtividade do trabalho e a rentabilidade do capital (formação profissional, investigação científica, aeroportos e portos, autoestradas, política industrial e de desenvolvimento regional, parques industriais, telecomunicações, etc., etc.). As políticas sociais são as políticas públicas que decorrem dos direitos económicos e sociais dos trabalhadores e dos cidadãos em geral (população ativa efetiva, crianças, jovens, desempregados, idosos, reformados, “domésticas”, produtores autónomos). Traduzem-se em despesas em bens e serviços consumidos pelos cidadãos gratuitamente ou a preços subsidiados: educação, saúde, serviços sociais, habitação, transportes urbanos, atividades culturais, atividades de tempos livres. Algumas das políticas sociais envolvem transferências de pagamentos de vária ordem financiados por contribuições dos trabalhadores ou por impostos no âmbito da Segurança Social (bolsas de estudo, abono de família, rendimento social de inserção, pensões, subsídios por doença e por desemprego). As transferências ocorrem, por via da solidariedade social institucionalizada pelo estado, dos mais ricos para os mais pobres, dos empregados para os desempregados, da geração adulta e ativa para as gerações futuras e os reformados, dos saudáveis para os doentes. O conjunto das políticas públicas e sociais tem uma tripla função.

Primeiro, cria condições para o aumento da produtividade que, pela sua natureza ou volume, não podem ser realizadas pelas empresas individuais, abrindo assim o caminho para a socialização dos custos da acumulação capitalista, razão por que a redução dos lucros a curto prazo redundará, no médio prazo, em expansão dos lucros.

Segundo, as despesas em capital social aumentam a procura interna de bens e serviços através de investimentos e consumos coletivos e individuais. Terceiro, garante uma expectativa de harmonia social porque assenta na institucionalização (isto é, normalização, desradicalização) dos conflitos entre o capital e o trabalho e porque proporciona uma redistribuição de rendimentos a favor das classes trabalhadoras (salários indiretos) e da população carenciada, fomentando o crescimento das classes médias, em todos criando um interesse na manutenção do sistema de relações, políticas, sociais e económicas que torna possível essa redistribuição. Enquanto gestor global deste sistema, o estado assume grande complexidade porque tem de garantir uma articulação estável entre os três princípios de regulação do estado moderno propícios a tensões entre si: o estado, o mercado e a comunidade. A estabilidade exige que o estado tenha certa primazia sem asfixiar o mercado ou a comunidade. Se, por um lado, o estado garante a consolidação do sistema capitalista, por outro lado, obriga os principais atores do sistema a alterarem o seu cálculo estratégico: os empresários são levados a trocar o curto prazo pelo médio prazo e os trabalhadores são levados a trocar um futuro radioso mas muito distante e incerto por um presente e um futuro próximo com alguma dignidade. O estado social assenta, assim, na ideia da compatibilidade (e até complementaridade) entre desenvolvimento económico e proteção social, entre acumulação de capital e legitimidade social e política de quem a garante; em suma, entre capitalismo e democracia.

Este modelo de estado e de capitalismo tem vindo a  ser atacado a partir dos anos 1970 até a seu cume nos anos 1990 por um modelo alternativo, designado por neoliberalismo, que assenta na substituição da primazia do estado pela do mercado na regulação social. É um ataque ideológico, ainda que disfarçado de uma nova racionalidade económica.

São muitas as razões para a crescente agressividade deste ataque, mas todas elas têm em comum o serem fatores que favorecem a transformação da ideologia em pretensa racionalidade. Eis algumas delas: o modelo neoliberal está centrado na predominância do capital financeiro (sobre o capital produtivo) e para ele só há curto prazo; ou o médio prazo é, quando muito, alguns minutos mais; com o tempo, os trabalhadores e seus aliados transformaram a opção socialista, de incerta e distante, em opção esquecida, e passaram a aceitar, como vitórias, perdas menores, que só são menores porque vão sendo seguidas por outras maiores; o trabalho assalariado alterou-se profundamente e transformou-se num recurso global, sem que entretanto se tenha criado um mercado globalmente regulado de trabalho; o “compromisso histórico” gerido pelo estado nacional transforma-se num anacronismo quando o próprio estado passa a ser gerido pelo capital global.

O estado social português nasceu em contraciclo, depois da revolução do 25 de Abril de 1974. Em parte por isso, nunca passou de um estado muito pouco ambicioso (quando comparado com os outros estados europeus), um quase-estado-providência, como o designei nos anos 1990, e nunca deixou de depender de uma forte sociedade-providência. Mas, mesmo assim, foi essencial na criação e consolidação da democracia portuguesa do pós-25 de Abril. É este o sentido da  sua consagração constitucional. E porque entre nós a democracia e o estado social nasceram juntos, não é possível garantir a sobrevivência de qualquer deles sem o outro. 


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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