Em período eleitoral, voltamos às ladainhas entre o público e o privado, se uns demonizam o público e entronizam o privado, logo vêm os outros que fazem exatamente o contrário.
Mas o que é o “público”? O conceito de “público”, tal como o conhecemos hoje, nasceu por oposição direta ao de “individual”, nasceu para combater a ideia de propriedade exclusiva do tirano absolutista, e é muito recente na história da humanidade. Se não contarmos, e não devemos contar, com os patrícios romanos que o cunharam na linguagem, nem com os habitantes das cidades ainda muralhadas do século XV europeu, a ideia de público a abranger todos os seres humanos de uma determinada nação tem 236 anos. Apenas alguns milímetros numa linha temporal com vários metros de comprimentos.
Para além do mais, é um conceito pouco ou nada robustecido. Ao mais alto nível, são cada vez mais comuns os discursos políticos e as ações governativas que o põem em causa, que pretendem mesmo aniquilá-lo totalmente. E isso é grave de todos os pontos de vista, mas se considerarmos a adequação do conceito de “público” à ideia de espaço, é particularmente dramático. O espaço público é também um direito recentemente conquistado. Ainda há não muito tempo, talvez na geração dos nossos avós, seguramente na dos nossos tetravós, havia seres humanos que viviam uma vida inteira confinados à utilização de um espaço mínimo, um espaço de algumas dezenas de metros, sem o direito, nem a possibilidade, de pisar chão para além desse.
Hoje, atrelamos o computador ao e-dreams ou ao skyscanner e, por umas dezenas de euros, arranjamos uma viagem de emoções intensas e pegada ecológica ainda maior. Mas mesmo isso, pode acabar a qualquer momento. E, como sempre, não damos qualquer valor àquilo que já temos, só porque foram outros que há 236 anos o conquistaram para nós. Só quando acabar mesmo é que, por ironia, todos gritamos “Aqui d’El Rei”. Não damos o devido valor ao que é verdadeiramente público, já nascemos com todos esses direitos garantidos e temos a sensação que vai ser assim para sempre. Não há azar. Até haver.
Tenho a sorte de fazer o meu percurso diário por um parque urbano que, embora inaceitavelmente decadente, é um dos mais notáveis da Europa, seguramente o mais atraente do país. Não é por lá passar praticamente todos os dias que o vou menosprezar. Sendo historicamente belo, o Parque de Santa Cruz, ou jardim da Sereia, ficou ainda belo com as esculturas do Rui Chaves, que enalteceram e ajudaram a harmonizar a sua exuberância tardo-barroca e a sua sobriedade romântica. Um destes dias reparei que foram vandalizadas novamente. Não se devia usar este verbo para estas ações, porque só quando o Império Romano chegou às margens do Reno é que a tribo dos Vândalos se confrontou com a ideia de espaço público. Hoje, as tribos que praticam essas ações têm plena consciência do conceito de público e fazem-no em primeira instância para atentar contra ele. Quer seja por arrogantes e pseudo-clandestinas assinaturas de acrílico, quer seja por míseros outdoors oficiais, ou mesmo institucionais. Nesse sentido, e curiosamente, têm motivações muito semelhantes às dos multimilionários amigos de Donald Trump, com a diferença de que estes últimos sabemos bem quem são.
Mas não deixa de ser curioso que, por qualquer misterioso pacto de feísmo, estas mentalidades destrutivas não incidem tanto sobre a má intervenção no espaço público, que, tristemente, acaba por ser até a mais comum, pelo menos em Coimbra. Tantos “bonecos” desqualificados que andam para aí espalhados, a gritar-nos que lhes devemos chamar estátuas, tantos espaços urbanos miseravelmente tratados, e pouco ou nada lhes acontece. Mas a ponte Pedro e Inês, as esculturas da Sereia, os edifícios históricos da Universidade e da Alta, esses... esses até parece que têm mel. Gostava de saber a razão.