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22-10-2024        Público

Falar. Falar com alguém. Um gesto simples, espontâneo e quotidiano de comunicação através do qual, enquanto pessoas, nos ligamos todos os dias aos outros e, por inerência, à nossa comunidade e ao mundo. Por isso falar é de extrema importância para todos nós. Ao falar e interagir renovamos não apenas os laços que nos ligam aos demais, mas cimentamos a consciência que sobre nós mesmos temos e sobre qual o nosso lugar no mundo. Quem somos e onde nos situamos na comunidade resultam deste entrelaçar social e comunicativo com quem nos rodeia.

Para quem gagueja, falar é tudo menos simples e encerra uma experiência de dificuldades que, apesar de terem a sua expressão visível na fala, se desdobra por inúmeras esferas na sua vida. A gaguez, para quem não é gago, remete apenas para um problema na fala. Para quem gagueja, no entanto, remete para como lidar com uma conceção socialmente dominante de ser malfalante e para uma visão estigmatizante de quem é gago. Na sociedade, uma voz que não corresponda à conceção dominante de voz fluente é vista como incompetente. Os momentos de gaguez, caraterizados por repetições, prolongamento e hesitações no discurso, são classificados como falhas, erros, elementos a eliminar de um discurso que se quer produtivo, contínuo, sem interrupções ou ruídos. Falamos de discriminação que se gera pela descredibilização de alguém por gaguejar, a sua desqualificação social como comunicador e, depois, da sua desacreditação como ator social capaz de desempenhar diferentes papéis sociais.


Quem é gago procura, por isso, tantas vezes dissimular ou esconder a gaguez, receoso dessa desacreditação e desqualificação constante. Todos os dias há crianças e jovens gagos que se anulam pelo receio da reprovação de pais e professores, do riso dos amigos, e adultos que vacilam com a simples ideia de falar com alguém, dar uma entrevista, interagir com um grupo, depois de uma vida a sentir a censura sobre como falam. Em todos há projetos e possibilidades de vida que são ceifados pelo estigma e discriminação de quem é gago.

A Associação Portuguesa de Gagos nasceu em 2005 e tem sido sua missão a defesa do direito a gaguejar. Assume a gaguez como parte da diversidade de fluências que habitam o nosso espaço comunicativo e, como tal, como parte da diversidade de formas de falar das pessoas. A gaguez deixa de ser um problema da fala que deve ser suprimido, para ser um problema relacional na comunicação que implica tanto quem gagueja como quem o escuta, sejam estes indivíduos ou instituições. É o desajuste comunicativo entre ambos que cria barreiras às pessoas gagas e lhes retira dignidade. O direito à gaguez exige uma responsabilização dos interlocutores na criação de um “estar em diálogo” que saiba respeitar os diferentes tempos e ritmos de fala, que saiba escutar quem é gago.

Hoje celebramos o Dia Internacional de Consciencialização para a Gaguez. No passado dia 19, na conferência “Mudar o Rumo: Navegar a Gaguez no Mundo de Hoje”, vozes gagas subiram ao palco no auditório D. Pedro IV em Lisboa para se afirmarem livres no seu direito a existir. Na audiência, rostos amanheceram perante tamanha ousadia de liberdade. Com o avançar do dia, com o aproximar do encerrar do evento, o palco foi deixado livre. E o que se assistiu foi a um novo cumprir de Abril com o libertar transformador de quem viveu anos reprimido no uso da sua voz, ao caminharem para o palco e fazerem dela uso como nunca o tinham até então feito.

Quem fala assim é gago, assumidamente gago, e a sua fala será sempre um exercício político, de interpelação dos pressupostos do que é suposto ser a normalidade na fala. Só através deste exercício do direito a gaguejar se poderá fazer o caminho da transformação de mentalidades e de desconstrução dos mecanismos de discriminação que nos negam o reconhecimento pleno da nossa dignidade enquanto pessoas.


 


 
 
pessoas
Daniel Neves Costa



 
temas
comunicação    gaguez    dignidade