As grandes infraestruturas que se avizinham, aquelas que são necessárias para aproximar ainda mais o país da Europa, não serão de todo possíveis sem a força de trabalho dos imigrantes. Tal como a construção dessa Europa, há cinco ou seis décadas atrás, não seria de todo possível sem a força de trabalho dos emigrantes portugueses. As condições de uns e de outros não variaram muito.
A construção da cidade e da metrópole precisa de mão de obra. Precisa de mão de obra qualificada e até mesmo altamente qualificada. Mas também precisa, e muito, de mão de obra genérica, não qualificada se quisermos. E não é só para a construção, para que a cidade possa viver e prosperar no dia-a-dia, também é necessária mão de obra altamente qualificada, qualificada e não qualificada. Tudo aquilo que aqui designo genericamente por mão de obra não qualificada é na realidade, um conceito constituído pela força de seres humanos, por braços, mãos, pernas, pés, peitos, corações e cérebros de muitas pessoas que, de tanto os esquecermos, até nos parecem números na interminável lista de uma empresa de RH. Mas não são. São pessoas como nós, como pessoas eram também os nossos pais, tios e avós que saíram de Portugal há seis décadas atrás, fugindo da miséria, do isolamento e, sobretudo, de um regime como aquele que agora alguns querem à força retomar.
Onde moram essas pessoas? Na perspetiva do investidor de instinto primário, quanto mais barata for a mão de obra não qualificada, tanto melhor é a mão de obra. Portanto moram amontoados em tugúrios algures no litoral alentejano, nas zonas mais pobres do centro da cidade que, precisamente por serem pobres, escaparam à gentrificação, ou mesmo naquele território que, em Lisboa, costumam designar por “interior”. Quando esses lugares de moradia se tornam insuportáveis para as vizinhanças mais comodamente instaladas, os poderes públicos arranjam terrenos baratos na periferia desestruturada e fazem outsourcing para o projeto e para a construção, tudo promiscuamente misturado. Aparecem assim bairros gigantescos, escondidos e isolados de tudo e de todos, fora da cidade, fora de tudo.
O Zambujal era um destes bairros. Apesar de construído com o propósito de se integrar na cidade, ou não tivesse ele nascido de um plano designado “Plano Integrado”, nunca o chegou a ser. O “destino” quis que entretanto se “desintegrasse”, que ficasse isolado e esquecido no meio de nós rodoviários, de parques empresariais e de grandes complexos comerciais, autênticas catedrais do consumo suburbano. Quis o “destino” o que o plano integrado do Zambujal não fosse cidade. Quis o “destino” que ali morasse, e morresse, um ser humano chamado Odair Moniz.
Poderia ter sido doutro modo? Não sei. Sei no entanto que, pelo menos, se poderia ter tentado que assim não fosse. Como? Construindo cidade, em vez de uma desconexa manta de retalhos de infraestruturas, circulações, investimentos empresariais e correntezas de blocos de habitação social. Fazendo o que se faz nalguns países europeus, ou seja, tentando sempre construir cidade. Inseri-los em áreas de inequívoca continuidade para com a cidade existente, fazer com que sejam diversificados e incluam sempre vários standards de oferta de mercado e não só habitação social. Ou seja, e em síntese, regulando os valores do solo urbano para construir cidade densa. É assim em países liberais como a Holanda, a Dinamarca e a Suíça, por exemplo. Países que sabem o enorme valor que nos vem da possibilidade de termos cidades integradas e integradoras.
Em Portugal, antes e depois do PRR, a administração pública baba-se com os milhares de milhões de euros que caem do céu e, pressionada pelas implacáveis acusações da crítica mediática e pelo draconiano CCP, só conhece dois critérios para os concursos que é obrigada a lançar - o preço e a pressa, como tão bem diz um amigo meu.
Quis o “destino” que em Coimbra se estivesse nesta mesma semana a iniciar a construção de mais um grande complexo habitacional de interesse social. Quis o “destino” que fosse na Quinta das Bicas, em Taveiro, nos interstícios de grandes nós rodo-ferroviários, de complexos comerciais e de parques empresariais suburbanos.
Oxalá possamos ainda ir a tempo de construir cidade à sua volta, oxalá sejamos suficientemente iluminados para o fazer. No triste caso do Zambujal de Odair Moniz, como em tantos outros bairros das nossas periferias, essa iluminação não chegou a tempo.