Há duas semanas, a Polícia de Segurança Pública (PSP) divulgou dados relativos ao aumento das burlas em Portugal. Elas são já “as grandes responsáveis pelo aumento da criminalidade geral denunciada em 2023”. Foi dito que os idosos continuam a ser os cidadãos mais vulneráveis a esquemas de burla presenciais, mas que as novas tecnologias estão a gerar condições que expõem todos a novas formas de burla. Este registo merece atenta reflexão por vários razões.
Primeira, a burla, o roubo, o abuso do poder são tão velhos quanto a existência dos seres humanos. Por isso, ao longo dos milénios foram-se construindo fatores de referência moral e ética nas sociedades, instrumentos para gerar compromissos, regulações e contrapoderes. Hoje, temos a exaltação da vida em sociedade reduzida a um jogo entre indivíduos em que vale tudo para “vencer” - o Homem como ser social é esquecido. Quem detém poder arvora-se, sem pudor, no direito de o utilizar de forma unilateral. O fundamental da vida económica, sustentado na financeirização e em movimentos globais livres, parece organizar-se em nenhures - não sujeito a qualquer tipo de fronteiras, de estados ou de regulações. E, em nenhures, as relações sociais são relações entre fantasmas.
Segunda, a apropriação indevida da riqueza feita de forma “legal” tem crescido exponencialmente. A manipulação de estruturas (apresentadas como empresariais) e das formas da sua organização e atuação, ou muitas das operações financeiras que conduzem àquelas escandalosas concentrações de riqueza, não passam de burlas feitas à comunidade e aos próprios estados. O digital constitui-se importante instrumento neste processo. E a inteligência artificial está convocada para o mesmo objetivo.
Terceira, as tecnologias, onde se incluem o digital e a inteligência artificial, são absolutamente transversais no funcionamento da sociedade. Por essa razão aquele alerta da PSP merece muita atenção. O comum dos cidadãos está a ser “burlado” em muitas dimensões da sua atividade, da sua vida.
As formas de comunicar à distância e as redes estruturadas para as utilizar são encontros entre estranhos, interações efémeras, onde não estão presentes os elementos suficientes para a plena formação do compromisso. Entretanto, estamos numa descoincidência entre o espaço da vigência das leis e dos sistemas de regulação e o espaço em que atuamos e vivemos. Sempre com a pressão do individualismo a induzir o não respeito pelo outro.
No mundo do trabalho o digital veio criar relações laborais que também ocorrem em nenhures. Por outro lado, se é negada a existência e funcionamento de um Sistema Coletivo de Relações de Trabalho, o que fica é a unilateralidade patronal burlando direitos fundamentais do trabalho.
Deus deve ter tido fortes razões para criar o espaço e o tempo. Não abdiquemos deles