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03-06-2024        Público

Um destes dias tive uma interessante conversa com uma amiga feminista, cuja visão ideológica do mundo atual vai ao encontro daquelas que aqui critico. Para ela, não há fenómeno social ou cultural que possa ser compreendido ignorando a perspetiva feminista (opinião que respeito e que, pelo menos, ajuda a pensar). Esse diálogo é frutuoso para mim, como homem que procura levar a sério a condição feminina, adotando quando necessário a sua perspetiva, para ajudar a combater mecanismos opressivos e de reprodução de desigualdades injustas, seja qual for a sua base (género, classe, etnia, raça ou orientação sexual), porque isso me ajuda a romper com alguns estereótipos incorporados – é um exercício epistemológico constante – e que todos e todas transportamos no subconsciente. As diferenças de condição e de opinião só se enriquecem se o diálogo entre as partes iluminar a consciência de cada uma.

As correntes feministas em ascensão a nível internacional vêm há várias décadas cumprindo um papel fundamental nas sociedades ocidentais: o de serem vozes informadas que denunciam práticas ancestrais de menorização e exclusão da mulher perpetuadas pelo patriarcado. Esse contributo é fundamental não só para a denúncia e consciencialização da subalternização da mulher pela mentalidade masculina e marialva, mas também para uma leitura do mundo através do olhar da condição feminina que, por ser feminina, lança luz sobre um diversidade de temas que vão da ciência às relações de trabalho, da sexualidade à vida política, da economia às desigualdades (não só de género, mas também de classe, de orientação sexual ou de raça).

Esta introdução permite-nos assumir que estou consciente do problema da desigualdade de género e de que a questão do assédio (moral ou sexual) revela a existência de práticas abusivas perpetuadas (e em geral desculpadas) por parte de agressores que beneficiam do poder masculino da sociedade patriarcal.

Por outro lado, a consciência desta realidade não significa que esteja de acordo com a “gritaria feminista” que vem crescendo na sociedade – sobretudo no campo académico e veiculada pelos media – e cuja narrativa parte de uma premissa que considero dogmática e de viés ideológico: a premissa de que sendo uma mulher a motivar a queixa, assumindo-se como vítima, logo, a perspetiva feminista (do campo da esquerda, em geral) aceita e subscreve como verdade intocável esse argumento ou essa “denúncia”. Ou seja, o julgamento moral é imediato… e ai da jornalista (mulher) que ouse defender o contrário!

Uma conhecida feminista e ativista negra americana (bell hooks/ Gloria Watkins), denunciando o excesso de radicalismo do feminismo branco afirma: “Ironicamente, as mulheres que mais desejavam ser vistas como vítimas, que davam um peso excessivo ao papel de vítima, eram mais privilegiadas e poderosas do que a vasta maioria das mulheres da nossa sociedade” (Teoria Feminista, 2020, p.82), criticando essa vitimização de mulheres burguesas brancas por descurarem a ligação aos movimentos de massas e, no fundo, a politização do movimento feminista.

A narrativa dogmática nunca questiona ou aponta qualquer crítica no sentido de mostrar a complexidade das afinidades entre seres humanos (homem-mulher, homem-homem, mulher-mulher, homossexual-heterossexual, homossexual-homossexual, etc.) como assentes num jogo complexo de poderes, jogo esse onde não é apenas o “opressor” que participa, mas também o “oprimido” (homem ou mulher). No jogo sexual, como sabemos, os papéis de dominador /dominado podem inverter-se e essa inversão é até assumida deliberadamente (seja a relação hétero ou homo) porque a força simbólica e a intensidade da entrega sexual seriam impossíveis com base no nivelamento milimétrico da igualdade entre as partes.

O feminismo radical de hoje omite essa dimensão, privilegiando a visão dicotómica simplista onde o culpado e a vítima estão antecipadamente identificados, sem se importarem com o cancelamento imediato do alegado assediador. Acresce que, associado a isso, as interações ritualizadas entre dois seres envolvendo sexualidade não deixaram de conter alguma linguagem de sedução (embora hoje, segundo o cânone do politicamente correto, essa linguagem deva ser anulada e substituída pelo convite explicito) onde, mais uma vez, nenhuma das partes é inocente nesse jogo. Por isso é tão difícil provar quando alguém se queixa a posteriori – mais ainda quando passaram décadas – sobre qual o grau de anuência e de aceitação/ recusa no momento em que tal jogo foi iniciado. Não falo aqui de casos ostensivos de assédio, agressão ou de violação (que são crimes e casos de polícia), mas sim de relações onde há múltiplas zonas cinzentas.

Ora, o que é lamentável é que os juízos morais de algum feminismo (de colheita recente) se antecipem muitas vezes ao apuramento dos factos. O que é lamentável é a condenação imediata de uma das partes antes que se saiba qual o seu grau de responsabilidade.

Qual o grau de responsabilidade de cada uma das partes, sobretudo em situações (que não podemos generalizar, mas que existem) onde, factualmente, são conhecidos os dividendos e benefícios de quem os usou sem um queixume, para mais tarde se assumir como vítima. Serão todas as mulheres assim tão vulneráveis? Se é verdade que na sociedade patriarcal onde vivemos é a mulher o elo mais frágil, não deixa de ser igualmente verdade que muitas vezes é o elo fraco que avança com os primeiros sinais ou porque vê nisso o melhor caminho para a sua segurança ou porque busca apoiar-se nessa ligação tutelar para com isso fortalecer o seu poder e estatuto.


 


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
moralidade    assédio    feminismo    sociedade    metoo