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20-04-2024        As Beiras

É muitas vezes evocada a importância do movimento estudantil na resistência ao Estado Novo e o seu importante contributo para a queda do regime caduco e injusto que o sustentou. Infelizmente, esta evocação é com frequência bastante parcial, sendo acompanhada de um esquecimento de vários dos seus importantes momentos, escolhas e protagonistas. Esta tendência determina perspetivas incompletas, que relativizam o papel crucial e de longo fôlego, para a vitória da democracia, da intervenção política e cultural de sucessivas gerações de estudantes. Nos cinquenta anos de Abril, vale a pena mencionar esta lacuna centrando a atenção no caso de Coimbra e nos últimos anos do anterior regime.

É consensual e justa a referência, tantas vezes feita e evocada, à importância da «crise académica de 69». Ela teve lugar, como se sabe, quando da reação da larga maioria dos estudantes da Universidade de Coimbra ao episódio, vivido a 17 de Abril de 1969, da recusa da cedência da palavra ao seu representante máximo numa sessão pública presidida pelo então presidente da República. O momento dinamizou então um protesto coletivo que culminou com uma greve aos exames amplamente cumprida, com um impacto capaz, durante meses, de envolver a cidade e de ecoar pelo país como um forte sinal de contestação do regime. Serviu também para ampliar a consciência coletiva de necessidade de derrubar o regime, conquistando então as mulheres, pela primeira vez, um lugar de destaque na luta estudantil.

O episódio tem sido, todavia, destacado de uma forma que tende a desvalorizar outras situações igualmente decisivas para a transformação do movimento estudantil em importante alavanca da decadência e da queda da ditadura. Sublinho três delas. A primeira vivida em redor do ano de 1962, quando a Associação Académica de Coimbra foi conquistada em eleições por uma maioria de estudantes democratas e se tornou possível, também num contexto de reforço geral da Oposição democrática, erguer uma corrente de opinião estudantil abertamente avessa ao regime. Esta primeira «crise» culminou com iniciativas de solidariedade, reprimidas pelas autoridades, com os colegas de Lisboa mobilizados em revolta contra a repressão da liberdade associativa.

A segunda situação liga-se à importância do período de 1971-1974, muitas vezes esquecido. Após uma fase de «ressaca» e recuo da crise anterior, o movimento em Coimbra recompôs-se e ampliou-se através de um conjunto de fatores. Desde logo, uma forte politização dos estudantes e da sua luta, não exigindo apenas direitos, mas já o fim do regime. A oposição à Guerra Colonial foi aqui fator importante. De seguida a emergência da esquerda radical, de início residual, mas com crescente capacidade de mobilização, bem como a melhor organização de setores políticos já existentes, como os comunistas e os católicos progressistas. Parte deste setor articulou-se com a influência do Maio de 68 e da nova cultura juvenil, a entrar em força no nosso país. Depois ainda uma fortíssima repressão política, com muitos estudantes, pela primeira vez, a ser detidos com pesadas penas e torturados. Por fim, a acompanhar o fecho pela polícia da AAC em fevereiro de 1971, uma diversificação das formas de protesto nas escolas e na rua.

Já a terceira situação conteve uma dimensão alargada aos últimos vinte anos do Estado Novo. Foi o pano de fundo sem o qual a iniciativa estudantil não teria as caraterísticas e o impacto que teve. Integrou um forte tecido cultural, de natureza individual e coletiva, que produziu entre os estudantes uma forte sensibilidade contracultural e antirregime. As redes de leitura intensa e debatida de livros e jornais, os organismos e hábitos ligados ao teatro e ao cinema, o aproveitamento de cafés e repúblicas como lugares de convívio solidário, o uso instrumental das artes e da música, a valorização da ética, da solidariedade e da democracia como filosofia de vida, foram cruciais neste processo. Sempre de uma natureza democrática capaz de influenciar outros setores da sociedade, incluindo nestes alguns militares. Sem este caldo de cultura o 25 de Abril e a nossa Revolução não teriam sido o que foram.  


 
 
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Rui Bebiano



 
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