As últimas legislativas e a mudança de orientação política da governação coincidiram com o cinquentenário da Revolução de Abril, proporcionando, a par de uma maioria de sínteses, evocações e interpretações globalmente positivas, um conjunto de leituras e afirmações de sinal contrário. Este não emerge como fruto do acaso. Refiro-me ao surgimento, nos setores partidários de direita e de extrema-direita, em parte significativa do universo do comentário político público e mesmo junto de bom número de eleitores, de posições que qualificam este momento do nosso trajeto coletivo como «fim de ciclo». Alguns, mais afoitos ou embalados por um clima de impunidade sobre quem se declara contra a democracia, têm falado até de «enterrar o 25 de Abril».
Questionado recentemente, durante um debate, sobre o que considerava ter corrido mal nos anos de democracia, respondi que existiam, obviamente, problemas estruturais por resolver. Desde logo a persistência de desigualdades sociais, mas também a falta de um modelo de desenvolvimento sustentado e solidário que não dependa apenas de cada ciclo político. Juntei ainda a ausência de um esforço persistente de apoio à cultura, além da ocorrência de manifestações de intolerância, racismo e sexismo. Mas respondi também que, a par da existência de avanços e recuos, de experiências positivas e de outras falhadas, e de objetivos por cumprir, o essencial dos três D que em 1974 o programa do MFA previa – Democracia, Descolonização e Desenvolvimento – tinha sido completado. Projetando progressivamente um país que não pode ser comparado àquele que viveu longas décadas de ditadura, subdesenvolvimento, pobreza e guerra.
Esta evidência é contrariada por setores que viram as costas à realidade apoiados num ambiente de desmemória alimentado sobretudo pelo esquecimento. Este não é apenas um fenómeno natural, comum à vida dos indivíduos e das sociedades, mas pode também ser suscitado, e é-o com bastante frequência, por processos de apagamento e silenciamento mais ou menos conscientes. Por sua vez, estes podem ser causados pela conjugação de interesses políticos e sociais em jogo com a indiferença pública ou o desconhecimento do passado que os alimentam. Foi esta falha que dramaticamente referiu o escritor Primo Levi, sobrevivente e testemunha notável do Holocausto, quando falou do «dever de memória» como instrumento de reparação mínima do sofrimento das suas vítimas e meio de impedir que algo análogo possa voltar a ocorrer.
A degradação da memória positiva do tempo fundador da nossa democracia, da qual falei no início, ocorre porque nestes cinquenta anos tem sido feito um trabalho em regra insuficiente, por vezes ineficaz, que, sem nostalgias que elas não entendem, consiga mostrar às novas gerações e relembrar às que dele se foram esquecendo, o país que fomos, os avanços que conseguimos, os direitos que conquistámos, o reconhecimento que alcançámos, possíveis porque resultantes do tempo, certamente imperfeito, mas sempre criador e plural, da democracia em que vivemos. Tempo que foi inicialmente de provisória desordem – como insistem em referir-se-lhe alguns manuais escolares – porque apenas desse modo foi possível demolir a ordem injusta e desigual na qual o país vivia.
Aquela tentativa de depreciação tem a ver também com debilidades da nossa democracia. Com o défice de diálogo e de cooperação, ocorrido mesmo no interior dos mesmos campos políticos, com a dificuldade dos sucessivos governos em arbitrar o jogo entre o interesse coletivo e o dos grupos, com a inexistência de um combate célere e eficaz à corrupção, com escolhas hesitantes, dependentes de jogos de tática e não de orientações estratégicas, ou com uma intervenção complementar, tantas vezes parcial e destrutiva, de boa parte da comunicação social. Nada disto, porém, é culpa do sistema democrático, como proclama a extrema-direita populista. De facto, se podemos falar de um «fim de ciclo» de Abril é porque, nesta viragem do cinquentenário, podemos entrar num tempo dedicado à sua renovação e aperfeiçoamento.