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07-02-2024        Público

Uma onda de protestos de agricultores tem se expandido por toda a Europa. Ao longo das últimas semanas, os bloqueios com tratores e caminhões também chegaram às estradas e fronteiras portuguesas. Reivindicações legítimas por melhores condições de trabalho e valorização dos produtos caminham ao lado de temas sinuosos de geopolítica internacional e críticas contra as regulações ambientais e medidas pela transição climática.

Em França e na Bélgica o setor alega sentir-se sufocado por uma regulamentação excessiva em matéria de proteção ambiental vinda da União Europeia e dos governos nacionais. Os agricultores sentiram-se “enganados” quando – mediante interesses políticos circunstanciais – viram a aplicação de regulamentação “flexibilizada” a outros. Assim, pela importação de produtos, os agricultores europeus “pagaram” desproporcionalmente a solidariedade europeia com a Ucrânia. Temem que ainda vão pagar a conta da liberalização do comércio com o Mercosul que visa beneficiar maioritariamente o sector industrial e financeiro. Para os manifestantes esse tipo de flexibilização compromete a concorrência justa com os produtores da UE que têm de obedecer a uma regulamentação muito mais rígida que a agroindústria brasileira ou ucraniana.

Mas o debate à volta da política agrícola na Europa tem raízes históricas mais profundas e desde o passado foi guiado por alguns princípios contraditórios. Por um lado, a Europa quis criar um mercado liberalizado europeu de produtos agrícolas, que beneficiava em primeira instância a agroindústria e o capital financeiro europeu. Na prática favoreceu monoculturas, produtos estandardizados e a concentração de capital e terras em cada vez menos mãos. Essa prática não só esmagou pequenos agricultores, como provocou uma migração massiva do campo para a cidade e da periferia para o centro da Europa.

Em resposta às lutas dos agricultores remanescentes, buscou-se desenvolver uma política assistencialista e protecionista. A primeira componente não funciona como um direito solidário – como mecanismo para diminuir desigualdades circunstanciais – mas distribui subsídios aos agricultores para não produzirem. A segunda componente visa proteger os produtores europeus da concorrência mundial. Parcialmente, essa política protecionista – em articulação com as reivindicações ecológicas dos movimentos verdes – foi legitimada sob o discurso do protecionismo ambiental. A proteção mercantil existirá para proteger o mercado europeu da concorrência desleal baseada em falta de legislação ambiental em países terceiros. Visa a proteção contra a produção de OGM, a utilização de hormônios e pesticidas proibidos, a devastação de florestas tropicais, o desrespeito de direitos humanos, etc…

Mas esse discurso protecionista ou até ecologista não deve esconder que na prática, a política da UE continuou a beneficiar principalmente o grande capital. Quem nomeadamente conseguiu arrecadar a maior parte desses subsídios foram os grupos económicos que controlam milhares de hectares de terrenos agrícolas e que têm serviços jurídicos especializados para garantir os acessos aos fundos. Só para exemplificar, até ao "Brexit", o maior recetor de subsídios europeus era o fundo da família real britânica. O land-grabbing, a compra ou expropriação de enormes quantidades de terrenos por conglomerados financeiros estrangeiros, é há algum tempo um problema em vários países. Não só na África subsaariana, mas também por exemplo na Ucrânia, essa prática tem impossibilitado o acesso dos agricultores locais a terrenos acessíveis e recursos hídricos. Agora também na Europa, principalmente depois da crise de 2008, existe uma forte tendência de que grupos e conglomerados financeiros comprem terrenos agrícolas como forma de especulação segura. A consequência disso é que os terrenos disponíveis para os agricultores têm diminuído na medida em que os preços dos terrenos têm aumentado exponencialmente.

Ademais, uma importante consequência da política de subsídios foi a forma como afetou a capacidade produtiva, principalmente na periferia europeia. A relação entre o valor dos subsídios por hectare e o menor poder de compra local acelerou o abandono das produções menos intensivas na periferia – muito mais que nos países do centro da UE. Dessa forma, ironicamente, só aceleraram a desertificação, empobrecimento e aumento das desigualdades.

Finalmente, um dos maiores problemas dos agricultores são os preços baixíssimos ao quais têm de vender os seus produtos; preços que regularmente não cobrem os custos de produção. É consequência daquilo que em economia é designado como oligopsónio; que é quando um pequeno número de grandes distribuidoras consegue impor preços extremamente baixos a uma grande quantidade de pequenos e médios agricultores. Ao mesmo tempo, esses mesmos produtos aparecem para os consumidores cada vez mais caros. A margem de lucro fica praticamente toda nas mãos dos revendedores e cadeias de supermercados; em Portugal, é o grande capital da Sonae [a que pertence o PÚBLICO], Jerónimo Martins, etc...

O sentido de revolta dos agricultores é portanto mais que legítima. Politicamente, este movimento tem sido alvo de diversas disputas. Nomeadamente a direita populista tem tentado canalizar essa revolta em ganhos eleitorais. Nos Países Baixos, levou à criação de um novo partido populista: BoerBurger Beweging. Na Alemanha, a extrema-direita da AfD tem tentado cooptar o movimento. E na França, a extrema-direita, a esquerda e o próprio Macron disputam entre si quem melhor defende os agricultores. No entanto, seguindo a nossa exposição, o grande capital parece-nos o principal problema dos agricultores. Uma esquerda anticapitalista deveria portanto ser o seu único aliado natural, exatamente por ser o único que evitará que um protesto legítimo leve à deterioração do nosso meio ambiente coletivo.


 
 
pessoas
Jonas Van Vossole



 
temas
Europa    agricultura    política