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24-01-2024        As Beiras

Faz um ano que o Jorge Vilas nos deixou, conheci-o quando se estavam a demolir as barracas pré-fabricadas de madeira na Relvinha, pondo um fim a décadas de condições de vida duríssimas, segregadoras e, para além do mais, indignas da condição humana. As secções culturais e os organismos autónomos da Associação Académica organizavam espectáculos, através dos quais também se angariavam fundos para a construção das novas casas. Nós, os do teatro universitário, éramos cartaz frequente. No bairro observava-se um permanente bulício de movimentos de terras, misturados com assembleias, discussões sobre as estratégias para a obtenção das novas habitações, por vezes conspirações.

Enfim, o que se verificava, na verdade, era a construção das casas a caminhar em paralelo com a construção da comunidade. O Vilas destacava-se sempre pelo modo como actuava, pelas propostas que fazia, pela capacidade de superar as mais duras dificuldades, sempre com inteligência e sensatez. Destacava-se porque se apoiava primordialmente na negociação fraterna, no diálogo livre de igual para igual, mas nunca cedia um milímetro que fosse na coerência e na firmeza das suas convicções. Eram convicções arreigadas, não careciam de grandes manifestos ou declarações de intenção, não tinham complicações pré-estabelecidas, tinham sido forjadas na dura experiência da vida em ditadura e eram permanentemente consolidadas na intensidade quotidiana do período que se seguiu ao 25 de Abril. Era tolerante e fraterno para com as pessoas que o rodeavam, mas repudiava visceralmente todos os tipos de opressão, de desigualdade, de segregação e de desonestidade. Foi também essa a sua maneira de agir politicamente. Estava inteiramente devotado a estas causas, no âmbito das quais se inseria a melhoria das condições das casas e do espaço público do bairro da Relvinha, ia negociando franca e abertamente com os sucessivos poderes instalados, mas jamais cedia na defesa intransigente dos valores de Abril. Era uma espécie de esteio de ética revolucionária, firme e coeso, ao longo do qual pendiam, esvoaçando em liberdade, inúmeras características profundamente humanas.

Meio século volvido, há um ano atrás, o pensamento do Jorge Vilas permanecia intacto, a sua maneira de agir também.

A sua inteligência era rara, no sentido do equilíbrio entre a razão e a emoção, um equilíbrio dinâmico, que tocava de leve a perfeição. Sempre que as coisas pareciam pender para a emoção, ele recolhia-se na inteligência racional. Lembro as pequenas e grandes obras para o Bairro, de cada vez que eu lhe tentava fazer ver vantagens mais subtis nesta ou naquela solução de projecto. Ele, se não as vislumbrasse de imediato, dirimia, empunhando a funcionalidade, o orçamento, o tempo de execução. Mas também, de cada vez que a racionalidade entrava em ebulição e ameaçava transbordar em vapor, recorria extrovertidamente aos meandros da sua inteligência emocional e cativava todos os que o escutavam. Acontecia frequentemente, ora em eventos comemorativos ora em sessões culturais que tinham uma abertura de cariz mais “institucional”, o Jorge Vilas relatava emotivamente a história do Bairro, varrendo de uma assentada todo o cinzentismo dos discursos de circunstância, era arrasador.

Foi esse equilíbrio dinâmico entre razão e emoção que conduziu toda a sua vida pública. Muitos viam nele aquilo que se chama um “líder natural”. É uma visão completamente viciada. Foi, isso sim, um coordenador de actividades, um brilhante condutor de processos, a sua acção seguia em paralelo com os seus companheiros e com as suas companheiras, com os seus vizinhos e com as suas vizinhas, com todos/as quantos/as visitavam o bairro e se deixavam contagiar pelo clima de igualdade, sensível e fraterna, que só ele sabia transmitir.
Jorge Vilas jamais permitia que se referissem a ele como líder. Era um cidadão completo, dotado de uma inteligência fora do comum, mas era um de entre nós.

Ao longo da vida, todos nós temos alguém a quem admirar, alguém cujo exemplo nos inspira e vai conduzindo as naturais hesitações. O Jorge Vilas foi um amigo do fundo do coração, ao longo de meio século. Mas o Jorge Vilas foi, para mim e penso que para muitos dos que o conheceram, uma grande lição.
Sim, é insubstituível, mas a sua memória vai certamente inspirar o Bairro, a cidade e até o mundo. E isso dá-me esperança e alento.  


 
 
pessoas
José António Bandeirinha



 
temas
relvinha    cidade    urbanismo    arquitetuta    jorge vilas