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13-01-2024        Público

Aproximadamente três meses marcam o calendário que dá início a uma guerra que põe a nu a total vulnerabilidade do direito internacional humanitário e das relações internacionais diplomáticas diante dos desígnios do grande capital.

A atuação violenta e sanguinária de Israel em Gaza tem demonstrado um autêntico banho de sangue que já fez mais de 23.000 vítimas civis; mais de metade delas crianças. Há hoje mais de 20 palestinianos que foram mortos por cada Israelita que morreu desde o início do conflito – inclusive os do massacre de 7 de outubro. Já na Guerra da Ucrânia a relação é exatamente oposta, há 1 morto civil por cada 20 baixas militares. Desde que a invasão de Gaza começou, um massacre igual ao de Bucha (300 mortos) tem ocorrido todos os dias.

Vários líderes europeus têm expressado críticas a Israel – entre eles Macron, De Croo, Sánchez e Borrel. Em sua boa – ou melhor, má – tradição atlanticista, o Governo português não é um desses e tem mantido um silêncio cúmplice.

Com o apoio incondicional, permissivo e culpado dos EUA, Reino Unido e Alemanha, Israel ficou pouco impressionado: Os chefes de Estado de Espanha e Bélgica foram acusados por Netanyahu de serem apoiantes do terrorismo. O governo de Israel até chegou a exigir a demissão do secretário-geral da ONU. Não admira que se olhe para o Ocidente como absolutamente hipócrita.

No entanto, uma das mais preocupantes consequências para o resto do mundo é a forma como Israel tem reescrito a nova lei internacional pelo “costume”. Todos os pilares do direito internacional têm sido postos na lixeira. Não estamos só a falar da arquitetura de segurança coletiva e dos direitos humanos que surgiram no período pós-guerra e do trauma da Alemanha nazi e o Holocausto.

A arquitetura institucional se mostrou ineficiente, inefetiva e inútil em resolver o conflito; nem sequer conseguiu “moderar” Netanyahu e seu governo de extrema-direita. As resoluções – aprovadas por quase unanimidade na assembleia geral da ONU são completamente ignoradas.

O poder de veto dos EUA que tem impossibilitado qualquer ação do Conselho de Segurança e um secretário-geral que até tentou usar os seus poderes extraordinários, mas que se mostrou inútil e vê a sua imagem degradada aos olhos de um espectador de bancada, enquanto já mais de 100 funcionários da ONU foram mortos por Israel, são uma evidência clara de que os princípios do direito internacional perderam até seu valor simbólico.

A gravíssima, descarada, aberta e até obscena violação de direitos humanos pelo “Estado democrático” de Israel nos últimos meses inclui, e não só, a deslocação forçada de populações, o assassinato de jornalistas; até inúmeras histórias de execução e tortura. Neste momento pouco parece distinguir o Estado de Israel duma organização terrorista e assassina como o Estado Islâmico, por exemplo, pela formo como trata seus oponentes.

Há duas semanas, soldados israelitas mataram três reféns israelitas nus, que traziam uma bandeira branca e que gritavam por ajuda em hebraico. É aterrador imaginar o que tem acontecido estas semanas com civis palestinianos, jornalistas, médicos ou voluntários que tiveram a infelicidade de se cruzar as forças da IDF.

Israel também está a criar graves precedentes relativamente a aspetos do direito internacional bem mais antigos. Estamos a falar de direito estabelecido no século IXX ou antes, como o reconhecimento de soberania nacional dentro de fronteiras internacionalmente reconhecidas e a Convenção de Genebra e a forma como forças militares têm de respeitar a Cruz Vermelha e serviços médicos.

O bombardeio de países estrangeiros, e portanto o desrespeito unilateral da soberania do território de estados, já tinha sido normalizado pelos EUA durante a “guerra ao terrorismo”. A Rússia também já se mostrou “criativa” em sua própria política de reinterpretar a doutrina da “responsabilidade de proteção” quando invadiu a Ucrânia para “proteger” os cidadãos do Donbass. Mas Israel nem esforço fez para reivindicar essa exceção dúbia. Israel nos últimos dias não só massacrou Gaza, como também bombardeou Síria e o Líbano; assassinando entre outros um general iraniano e destruindo por duas vezes o aeroporto civil de Damasco.

O precedente mais grave de todos, no entanto, é a forma como Israel tem tratado os serviços médicos e a Cruz Vermelha. O exército Israelita tem atacado de forma sistemática hospitais, instalações de saúde e ambulâncias sob o pretexto que constituíram bases, armazenamento e transporte de terroristas. Mesmo que fosse o caso, o direito internacional não permitiria estes ataques. Mas após quase três meses de guerra e de quase toda a infraestrutura de saúde de Gaza destruída, o exército Israelita foi incapaz de demonstrar qualquer prova minimamente credível e legítima de suas alegações.

Para a presidente do comitê internacional da Cruz Vermelha, Mirjana Spoljaric, confrontamo-nos como uma falha moral catastrófica: uma falha que o mundo não deve tolerar. Marc Biot, médico belga que trabalha há 34 anos na ONG Médicos sem Fronteiras em conflitos de guerra ao redor do mundo, afirmou recentemente que a destruição que está a acontecer nas instalações médicas e bloqueio de ajuda humanitária é sem precedentes.

Quando se naturaliza os 101 funcionários da ONU assassinados em Gaza, os médicos da ONG Médicos sem Fronteiras mortos dentro de hospitais enquanto cumpriam seu ofício de salvar vidas, funcionários da Cruz Vermelha atingidos fatalmente por ataques aéreos enquanto prestavam atendimento em ambulâncias, perdemos algo muito importante na nossa capacidade de fazer política humanitária, mas, sobretudo, enquanto humanidade…

Quando se naturaliza a banalização da violência, da barbárie, sobretudo com crianças e pessoas indefesas, percebemos que essa catástrofe que encerrou o ano de 2023 como um dos anos mais violentos desde a Segunda Guerra Mundial abre uma época de tempos sombrios


 
 
pessoas
Jonas Van Vossole



 
temas
palestina    israel    direito internacional    guerra    gaza