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16-12-2023        Público

"Colocar o cuidado no centro de um mundo em crise" é o título do Relatório sobre a Situação da Paternidade no Mundo de 2023, que é lançado, desde 2015, a cada dois anos, tendo como foco temas distintos que envolvem a importância e o estado da paternidade e cuidado a nível internacional. O relatório de 2023, lançado em julho deste ano, e do qual o Observatório Masculinidades.pt foi parceiro de investigação, constata, uma vez mais, os resultados de anos anteriores: não existe nenhum país no mundo onde mulheres e homens partilhem os cuidados de forma igual. Os dados apresentados resultam de um inquérito a que responderam cerca de 12.000 pessoas em 17 países, incluindo Portugal. O inquérito analisou não só quem presta cuidados, mas também como esses cuidados são prestados e a quem, e ainda o que pensam homens e mulheres sobre cuidado.

O que significa um mundo que coloca os cuidados no centro das prioridades políticas e da vida quotidiana? Será um mundo em que todas as pessoas têm acesso a cuidados de saúde e educação, em que se partilham os cuidados de forma igualitária, em que a licença parental igual para todos os pais e mães seja a norma e em que todos os agregados familiares dispõem de estruturas de cuidado a crianças de qualidade a preços acessíveis e de apoio para cuidar dos membros mais vulneráveis da família. Ou seja, será um mundo em que todos os tipos de cuidados são trabalhos qualificados e uma parte central das nossas vidas.

Mas esta visão parece ainda distante da realidade em que vivemos. Ao longo dos séculos as tarefas de cuidado têm sido assumidas sobretudo por mulheres e raparigas, sendo consequentemente invisibilizadas e subvalorizadas, não são remuneradas ou são mal remuneradas.

No entanto, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (Prestação de cuidados: trabalho e profissões para o futuro do trabalho digno / Bureau Internacional do Trabalho – Genebra: OIT, 2019), são realizadas diariamente em todo o mundo mais de 16 mil milhões de horas de trabalho de cuidado não remunerado – um montante que representaria 9 % do PIB mundial, ou cerca de 11 biliões de dólares por ano, se fosse pago com o salário mínimo.

Apesar de se registarem progressos em alguns países, os números mostram que nos melhores cenários as mulheres dedicam ainda 1,2 a 2 vezes mais de tempo com cuidados não remunerados. Os obstáculos à partilha das práticas de cuidados vão desde políticas que não promovem a igualdade na prestação de cuidados, às decisões familiares sobre o trabalho remunerado, à pobreza, às normas sociais e aos privilégios de alguns homens. De acordo com os dados, globalmente, os homens gastam apenas 19% do seu tempo total de não-lazer em trabalho não remunerado, em comparação com 55% para as mulheres.

No entanto, nem tudo são más notícias. Nos vários países onde foi levada a cabo a investigação verifica-se que muitas das pessoas inquiridas apelam a que os cuidados estejam no centro das nossas vidas e exigem políticas que os destaquem. A pandemia fez-nos pensar mais seriamente sobre o significado do cuidado e sobre a forma como este constitui a base da nossa vida. Os homens afirmam que estão a partilhar cuidados e estão dispostos a agir para fazer mais (77% em Portugal, por exemplo). Mas o ritmo da mudança é demasiado lento.

Enquanto o relatório sublinha alguns dos resultados positivos da investigação sobre os papéis de homens e mulheres na prestação de cuidados e ou/partilha equitativa, apresenta também as barreiras que impedem a participação igualitária na prestação de cuidados. Enumeramos alguns: 1) remuneração da licença parental – entre as pessoas que estavam empregadas e a quem foram oferecidas licenças, a maior proporção de homens e mulheres (49%) referiu não gozar a totalidade da licença disponível por não ser totalmente remunerada; 2) experiências no local de trabalho – nesta dimensão foi referido o receio de perder o emprego (40%), chefias que não apoiam (36%) ou o receio de serem julgados/as por pessoas amigas ou colegas (18%); 3) políticas que não promovem a igualdade na prestação de cuidados e sua articulação com questões sociais como a pobreza, ou normas sociais que valorizam e promovem os homens como provedores. Ou seja, as barreiras persistem e são estruturais, tanto nas políticas como nas normas sociais: custos dos serviços de cuidado; a falta de serviços públicos de cuidado; a falta de licenças para cuidar; atitudes/políticas laborais.

Mas apesar disto, temos que reconhecer os pequenos passos que estão a ser dados e o seu potencial. Desde logo, a paternidade como catalisador para a mudança. Tradicionalmente, a paternidade tem sido associada a noções de autoridade, de provedor da família e proteção – uma personificação do arquétipo estóico e que começa a decair. No entanto, a compreensão contemporânea da masculinidade reconhece que ser pai é um papel multifacetado que se estende muito para além do modelo tradicional de provedor. Atualmente os pais e homens cuidadores estão cada vez mais envolvidos no bem-estar emocional e na educação dos seus filhos e dependentes, desafiando as normas tradicionais. Neste sentido, a jornada da paternidade e do cuidado corresponde a uma experiência transformadora que desafia a imagem estereotipada dos homens como pilares inabaláveis de força. A força, no contexto da paternidade moderna, não se refere apenas à proeza física, mas engloba a expressão emocional, a vulnerabilidade e a capacidade de cuidar.

Talvez por isso, globalmente, também se reflitam alguns destes sinais positivos. A comunidade internacional incluiu o reconhecimento e valorização do trabalho de cuidado não remunerado como uma meta nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ONU) e declarou, este ano, o dia 29 de Novembro como o Dia Internacional do Cuidado e do Apoio.

Além disso, vários governos estão a implementar Planos Nacionais de Cuidado, algumas entidades empregadoras estão a estudar políticas que apoiem os seus trabalhadores a alcançarem o equilíbrio entre a prestação de cuidados e o trabalho remunerado e cada vez mais países e empresas proporcionam licenças parentais pagas, incluindo mais dias ou dias iguais para os cuidadores do sexo masculino.

A menos que a prestação de cuidados seja integrada de forma igualitária, pressupondo, entre outros fatores, uma abordagem transformadora dos homens e das masculinidades, o trabalho de cuidado desempenhado sempre pelas mesmas pessoas será insuficiente para provocar a mudança nas nossas sociedades que desejamos. O cuidado é hoje um dos grandes fossos de desigualdade de género – cuidemos de mudar isso.


 
 
pessoas
Alexandre de Sousa Carvalho
Tatiana Moura



 
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