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29-11-2023        As Beiras

Em 1942, os comandos aliados deram ordem de bombardeamento das cidades alemãs e dos seus habitantes. Entre 1942 e 1945, cerca de dois milhões de toneladas de bombas pingaram sobre 60 cidades, deixando-as em grande parte destruídas. Morreram 500 000 cidadãos/ãs civis e 80 000 pilotos. Há algumas evocações desse acto, mas o escritor Winfried Georg Sebald (1944-2001), no seu livro História Natural da Destruição oferece-nos um relato lancinante desses tempos, na perspectiva dos habitantes, dos que não morreram, vagueando sem destino pelas estradas que antes ligavam as cidades, carregados com malas ou puxando carros de mão com os parcos pertences, tentando encontrar a sobrevivência improvável. O armistício na Europa acontece finalmente em Maio de 1945, mas, como é bem sabido, o fim da guerra mundial só se alcançou após a destruição de mais duas grandes cidades japonesas pela acção das forças norte americanas: Hiroshima, a 6 de Agosto de 1945, e Nagasaki, três dias depois. A aniquilação dos habitantes foi instantânea e cifrou-se em cerca de 200 000 pessoas queimadas vivas, fora as que vieram a morrer depois pelo efeito das radiações, na maioria civis.

Hoje em dia, estamos todos/as focados/as nas cidades da faixa de Gaza e, embora menos, nas da Cisjordânia e do Sul do Líbano. Na comunicação social portuguesa não temos alternativa, vemos, ouvimos e lemos os comentadores e as comentadoras, sempre em opinião monolítica. Quem tem possibilidade, porém, vê, ouve e lê a comunicação social internacional e tenta perceber os factos. O que nos aparece à frente é, invariavelmente, a destruição de extensas áreas no contínuo urbano densamente povoado, com pouco mais de 40 quilómetros de extensão, que começa em North Gaza, que tinha 440 000 habitantes; depois Gaza City, com 750 000; Deir el-Balah, 320 000, Khan Younis, 430 000; e acaba em Rafah, no Sul junto à fronteira com o Egipto, com 275 000 pessoas. Desde 7 de Outubro, foram destruídas 276 000 habitações, 311 edifícios escolares e, num total de 35 hospitais, 26 deles ficaram completamente inutilizados. Antes desta trégua, a cada hora que passava morriam 15 pessoas, entre elas 6 crianças; 42 bombas eram lançadas e 12 edifícios eram destruídos. A cada hora. A 24 de Novembro, já tinham morrido 58 jornalistas, entre 51 palestinianos, 4 israelitas e 3 libaneses. Quanto aos funcionários das Nações Unidas, já se contam mais de 100 ocorrências mortais, o maior número entre todos os anteriores conflitos em que a ONU esteve envolvida.

Sem pretender aqui fugir à complexa questão de quem é o agressor e quem é a vítima, sabemos há muito quem é o colonizador e quem é o colonizado. Sabemos também que todas as políticas que apelam ao nacionalismo exacerbado, ao fundamentalismo religioso ou à explosiva combinação dos dois, têm um fim único: a guerra. A indústria do armamento agradece e apoia. Antes, essas políticas conviviam “harmoniosamente” com o racismo, a xenofobia e a homofobia, veja-se a França de Le Pen, a Itália de Salvini, a Hungria de Viktor Orbán, os Estados Unidos de Donald Trump, o Brasil de Jair Bolsonaro e agora os Países Baixos do anti-islamista radical Geert Wilders. Hoje, mais atentas às sondagens e ao eleitorado, já não caem nessa armadilha, veja-se a Itália de Giorgia Meloni ou a Argentina de Javier Milei. Hoje, quem sabe se ajudadas pela IA, usam argumentos mais finos, aparentemente mais “civilizados”, usam e abusam do nonsense para derrubar a democracia e chegar aos seus objectivos últimos que são, repito, a guerra e a destruição. Na faixa de Gaza, esses objectivos não só foram plenamente atingidos como superaram todas as expectativas, graças ao governo ultra-radical capitaneado por Benjamin Netanyahu e aos apoios internacionais que, apesar disso, granjeou.

É isso que vimos, é isso que ouvimos, é isso que lemos, as cidades mais visíveis no momento estão na faixa de Gaza. São nelas que concentramos as nossas atenções. Vemos, ouvimos e lemos que as pessoas em Gaza não andam errantes nas estradas, como os habitantes das cidades alemãs há 80 anos atrás. Dirigem-se todas decididamente para o Sul até ficarem encurraladas junto à fronteira de Rafah. Sem mantimentos, sem energia, sem água, sem cuidados médicos. A Crimeia e o Donbas perderam visibilidade, mas as cidades continuarão a ser destruídas até desaparecerem por completo.

Sabemos que a paz se conquista e sabemos que a guerra se ganha. Embora os beligerantes e todos os envolvidos no negócio de armamento se esforcem imenso para o desmentir, é muito mais difícil conquistar a paz do que ganhar a guerra. A paz conquista-se na construção e reconstrução de cidades, a guerra ganha-se na sua destruição.

As cidades, com os seus protocolos de vivência comunitária, aos quais chamamos urbanidade, são um dos símbolos da paz. Talvez por essa razão, vemos, ouvimos e lemos que a guerra tende a destruí-las, mesmo que isso não corresponda directamente aos objectivos designados como militares.

Agradeço, comovido, a Sophia de Mello Breyner e a Francisco Fanhais o mote que nos deixaram para apelar à paz, para poder recusar, com toda a energia do mundo, o “pecado organizado” que se institui, outra vez, no nosso tempo, nas nossas cidades.

Se não nos virmos, ouvirmos ou lermos antes, desejo a todos e a todas um bom Natal.


 
 
pessoas
José António Bandeirinha



 
temas
paz    guerra    cidades