Centro de Estudos Sociais
sala de imprensa do CES
RSS Canal CES
twitter CES
facebook CES
youtube CES
09-11-2023        Público

Os novos movimentos sociais (NMS) que emergiram na década de 1960 protagonizaram uma transferência da contestação política da esfera da produção para a esfera do consumo. Ou seja, os velhos combates da chamada “crítica social” (de base materialista) fundadas na luta de classes e no sindicalismo foram cedendo espaço para a “crítica estética” (pós-materialista, culturalista e identitária). O sociólogo francês Alain Touraine foi dos primeiros a teorizar sobre estes movimentos, animados, segundo ele, por três princípios essenciais: identidade (o elemento unificador e agregador); oposição (o adversário ou inimigo); e totalidade (modelo alternativo de sociedade). Como sabemos, esses protestos culminaram com o momento apoteótico do Maio de 68, onde as expectativas de convergência entre aquelas duas forças transformadoras saíram goradas. Se já então as identidades de base classista revelaram evidentes debilidades, a partir daí as tendências de recuo do campo sindical e da ação de «classe» acentuaram-se rapidamente.

À medida que os fluxos de mobilidade, as comunicações, os transportes e o campo tecnológico e digital aceleraram vertiginosamente, a própria natureza fluida, instável e errática das identidades entrou numa dinâmica de imprevisibilidade e hibridez ainda maiores. Daí as políticas identitárias. A crescente desterritorialização das comunidades foi acompanhada pela intensificação do vernáculo essencialista, como se a deslocação e o afastamento das comunidades de origem obrigassem, paradoxalmente, ao fortalecimento das raízes territoriais, reclamando “autenticidade” e reconhecimento. É justamente essa crescente volatilidade que leva a que as disputas identitárias se tornem cada vez mais agressivas. Isso conduz ao aumento da politização, acentuando divisões abissais, estimulando propostas e campanhas pela supremacia de uma dada identidade – a religião, a raça, a etnia, a nação, etc. – cuja razão de ser é a destruição e o apagamento de outras.

Diversos estudiosos da cultura e da linguagem há muito que vêm alertando para o problema: «De forma crescente, as paisagens políticas do mundo moderno são fraturadas por identidades rivais e ‘deslocantes’» (Stuart Hall, The Question of Cultural Identity, 1992). É sabido que a «raça» é antes de tudo uma categoria discursiva, e não uma realidade biologicamente sustentada. E, no entanto, foi principalmente a linguagem da supremacia racial branca (a raça ariana) que serviu de fundamento da narrativa nacionalista e xenófoba do nazismo. Aponta-se um inimigo identificável como fonte de desordem, ou potencial ameaça, a fim de promover a unidade de uma dada sociedade nacional; como se as nações modernas não fossem, todas elas, composições multiculturais e multiétnicas, apenas unificadas por uma narrativa de representação por parte do vencedor.

Toda a nação começa pela violência em que o ocupante mais apetrechado impõe o seu domínio sobre a diversidade de povos indígenas inscritos no território, apesar da maior ou menor resistência das coletividades locais. Os lusitanos resistiram cerca de duzentos anos até à ocupação romana e a herança cultural e linguística que une os portugueses resultou da progressiva assimilação do legado de diversos povos, incluindo romanos e muçulmanos, que habitaram a região do Condado Portucalense e o sul da Península Ibérica antes do Tratado de Zamora. As sucessivas batalhas até à expulsão total do inimigo, contribuíram igualmente para a unificação do reino a partir de 1143 (com a bênção de Roma). A glorificação da nação, de qualquer nação, exige repetição e encenação, com toda a panóplia de símbolos, rituais e liturgias, ingredientes decisivos para forjar o sentido de pertença a uma dada comunidade imaginada a que chamaram nação (Benedict Anderson). Exige também o esquecimento da violência exercida no processo fundacional, na invasão ou ocupação colonial, o que por vezes nem o tempo consegue apagar, como bem sabemos.

Ao longo do processo de consolidação identitária, seja na escala da nação, seja na comunidade local ou num movimento social particular, como nas mais recentes lutas em torno da raça, do patriarcado, da etnia, da religião, etc., a radicalização discursiva é expressão de uma intensa violência simbólica que exercita a diabolização do outro. A linguagem do ódio impede que a narrativa contrária seja ouvida. E o problema é que, apesar das correntes teóricas do campo das ciências sociais, estudos feministas e pós-coloniais alertarem para a importância da «interseccionalidade», ou seja, a necessidade de compreendermos a complexidade e instabilidade do mundo atual com base nas conexões entre essas diferentes linhas de fratura identitárias, o certo é que as posições de cada grupo no terreno, no combate político, manifestam-se em “dispositivos discursivos” acantonados nas suas certezas, no dogmatismo e na visão maniqueísta. O inimigo “satânico” merece morrer, ponto.

Um exemplo já antigo de identidades em disputa é relatado no livro de Stuart Hall. Tratou-se da nomeação pelo presidente George W. Bush, no início da década de 1990, do juiz Clarence Thomas para presidente do Supremo Tribunal de Justiça dos EUA, um negro conservador que, na sequência, terá sido acusado por assédio sexual por uma mulher, também negra, o que suscitou grande controvérsia no senado e na sociedade americana: «alguns negros apoiaram Thomas, baseados na questão da raça; outros opuseram-se a ele, com base na questão sexual; e as mulheres negras estavam divididas em função da identidade prevalecente: ou a sua identidade como negra ou como mulher… Os homens brancos também se dividiram não só em função da orientação política, mas também da sua atitude face ao sexismo e ao racismo. As mulheres conservadoras brancas apoiavam Thomas não apenas com base na sua inclinação política, mas também devido à sua oposição ao feminismo» (in AIdentidade Cultural na Pós-Modernidade, 2006, p. 19).

Daqui se conclui que o problema das lutas identitárias não é novo. O que é novo é que, hoje, o identitarismo, apesar de se desdobrar em versões muito díspares, vem mostrando a sua face mais violenta e dogmática. Nas universidades, nomeadamente aqui no Brasil onde agora leciono, muitos colegas queixam-se que a força dos movimentos identitários junto dos estudantes de licenciatura é tal que eles chegam à universidade achando que já sabem tudo, adotando atitudes radicais assentes num moralismo justiceiro que aponta baterias em diferentes direções. A assunção da homossexualidade ou transsexualidade, aliada ao radicalismo feminista e à questão da negritude tornaram-se bandeiras ostentatórias da disputa identitária no seio da academia. Em muitos casos, essas subjetividades identizadas levam a enfrentar o professor tentando desmontar o que chamam o seu “lugar de fala”, sobretudo se o docente em causa for branco, homem e heterossexual…

Este exemplo não é obviamente o mais grave, atendendo ao assustador crescimento do preconceito religioso anti-islâmico, após os ataques do Hamas de 7 de outubro e a subsequente invasão israelita da Faixa de Gaza. Neste contexto, o aumento de refugiados e imigrantes de origem muçulmana na Europa ajuda sobremaneira a radicalizar o preconceito numa politização extremada do identitarismo, o que, de um lado, estimula o fechamento e o populismo islamofóbico de extrema-direita e, do outro, alimenta e legitima a violência terrorista contra a democracia e o Ocidente, tomados como os inimigos a abater.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas