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02-11-2023        As Beiras

Escrevo-vos esta crónica durante uma viagem longa entre Nova Delhi, a chegar aos 33 milhões de habitantes, e Chandigarh que, tendo em conta o contexto da Índia, é apenas uma “pequena” cidade, com pouco mais de um milhão.

Chandigarh é uma cidade construída de raiz, totalmente concebida a partir do final da década de 1950 por um alargado grupo de arquitectos, entre os quais pontificavam os franco-suíços Charles Edouard Jeannneret, dito Le Corbusier, o seu primo Pierre Jeanneret e o casal britânico Jane Drew e Maxwell Fry. Foi pensada para ser a capital de uma nação íntegra, o Punjab, atabalhoadamente dividido após a saída do império britânico da Índia. Metade ficou no então chamado Paquistão Ocidental e a outra metade integrou a União Indiana, gerando um novo estado, precisamente designado Punjab. Os conflitos gerados por esta descuidada partição ainda hoje expõem as sequelas.

Na época, como muitas das estruturas urbanas planeadas de raiz, Chandigarh transbordava uma fé inebriante no futuro do mundo, no futuro das sociedades e, porque não dizê-lo, no futuro da arquitectura. Essa fé foi, sem dúvida, a sua característica mais emocionante, visível na estrutura do território, na procura da ordem, no respeito pela igualdade dos cidadãos perante o espaço público, visível, enfim, na rigorosa previsão de um futuro que acabou por não acontecer. Eu costumo ironizar e, acerca destas estruturas rígidas do movimento moderno, dizer que não foram os arquitectos que as conceberam que “falharam”, muito menos “falharam” as cidades assim concebidas. O que verdadeiramente falhou foi o mundo, foi a organização política e social, que se recusou a seguir naquela direcção, tão luminosa, tão ordenada e, sobretudo, tão ambiciosa. Fica-nos a sua memória, que não é coisa pouca.

Mas estas estruturas para-urbanas do Movimento Moderno, tão debruçadas sobre o futuro, como dizia Baudelaire, desdenharam das cidades tradicionais, menosprezaram-nas. Na sua ambição desmedida, qual torre de Babel, pensaram que a cidade poderia acabar assim, sem quê nem p’ra quê, de um momento para o outro. Ou seja, preconizaram o fim da cidade tal como a conhecíamos na época, acreditaram que aquilo que “inventaram” se podia substituir, sem mais nem menos, às urbes existentes. Acreditaram que eram melhores que uma organização ancestral, que designávamos como cidade, construída e sucessivamente testada pelas comunidades humanas ao longo de mais de dez milénios.

Até esse momento histórico, as alternativas às cidades existentes eram outras cidades, como as cidades projecto, Jerusalém; ou a cidade ideal do Renascimento, Ferrara, Urbino, Pienza; as utopias urbanas do Século XVIII; as cidades regeneradas do Século XIX e início do Século XX, Barcelona, Paris, Viena, e tantas outras. Os arquitectos modernos foram arrogantes ao ponto de querer acabar com elas. Aí sim, falharam.
Mas, mais grave do que isso, fizeram escola. Criaram regras, técnicas específicas de intervenção nas cidades. Tão rígidas, tão anti-urbanas, tão radicais quanto os seus propósitos de aniquilamento. E, ainda mais grave, esse conjunto de preceitos, até hoje, não foi contestado. Ainda vigora, como modelo, na grande maioria da normativa municipal e até na nacional. Mesmo em Portugal, sobretudo em Portugal.

A rua tradicional, por exemplo, quase tão antiga como a própria cidade, foi completamente banida. O arquitecto e urbanista catalão Manuel de Solà-Morales chama a essa interdição um “anátema” lançado pelo Movimento Moderno, mais especificamente pelo próprio Le Corbusier.

Pois bem, nos dias que correm, esse anátema, ainda vigora, e de que maneira! Contam-se pelos dedos de uma só mão, os arquitectos e urbanistas que ainda propõem ruas, que ainda as sabem desenhar. Todos os restantes, passam a vida a “inventar” novas soluções, tal como o quiseram fazer, sem êxito, os mestres do Movimento Moderno.

Pelo que me dizem por aqui os meus colegas, e pelos muitos cartazes que vejo nas ruas, Chandigarh quer ser também uma cidade inteligente. Acredito que o será. Acredito sobretudo porque quero acreditar na Índia contemporânea, apesar de todos os enormes constrangimentos.

Mas, para poder ser inteligente, Chandigarh ou qualquer outra cidade, tem de ser primeiro aquilo que é: uma cidade. A adjectivação - inteligente - não deve nunca tentar sobrepor-se à substância - cidade. E, para que isso aconteça, Chandigarh tem de olhar para o seu passado, para o passado de todas as outras cidades, tanto quanto olha para o futuro. Senão debruça-se e cai, como tão bem dizia Baudelaire.


 
 
pessoas
José António Bandeirinha



 
temas
Índia    cidades    contemporaneidade