Entre a estética (o belo, como diriam os gregos) e a ética (do indivíduo em relação à sociedade) não há vazios a serem preenchidos. Isto desde que se tenha consciência de que a esperança transita entre esses dois pólos. Se ainda não percebestes, caro leitor/a, estou a parafrasear os pensamentos do bruxo do Cosme Velho na voz e na escrita da personagem principal de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”. O livro, que rompeu com a tradição romântica sem se curvar ao estilo naturalista, foi publicado como folhetim na Revista Brasileira em 1880.
Machado de Assis, influenciado pela humor irônico do triunvirato das letras - Jonatham Swift, Voltarie e Molière - utilizou o narrador em primeira pessoa para criar situações inusitadas e descrever com discrição os eventos históricos que culminaram com a derrocada do 2º. Reinado. Contendo 160 capítulos, estabelece na forma um desvio estético para assegurar a atenção daquele que o lê, instigando-o a atentar para o que não está dito, mas contido nas entrelinhas.
Por exemplo, o capítulo 132 diz tudo em um parágrafo: não é para levá-lo a sério; enquanto que o 124 escancara a verdade ao afirmar que o leitor “não se refugia no livro senão para escapar à vida”. Assim, chegamos ao cerne deste ensaio: a esperança. Brás Cubas, em sonho, encontra-se com Pandora - a criatura (quase) perfeita esculpida em forma de mulher pelo deus Hefesto - que carrega consigo uma caixa contendo todos os bens e males do mundo. Entre eles, a esperança.
Se Machado pretendia expressar seu apreço pelo iluminismo, sem descurar de suas limitações frente às idiossincrasias de um novo sistema de dominação social, encontrou na alegoria da “caixa de Pandora” a chave para compreender que a esperança é, ao mesmo tempo, o maior dos bens e o maior dos males. Para tanto, deduz Brás Cubas em sua alucinação do real, precisamos de um artifício, quiçá uma compensação, para aceitarmos (quase) impávidos essa condição (des)humana na sociedade produtora de mercadorias, na qual nos tornamos “coisas” que fabricam outras coisas não para atender aos anseios e necessidades de aperfeiçoamento humano, mas para alimentar a insaciável vontade de acumulação dos deuses que habitam o Olimpo do Capital.
Machado de Assis, sempre visionário, antecipa em mais de um século as travessuras homicidas de um sistema que de criatura passou a controlar as mentes e os corpos de seus criadores. Na sua ironia corrosiva, traz nas memórias de um defunto o alerta para pensarmos o devir conscientes de que a esperança pode ser o maior de todos os bens se não perdemos o nosso compromisso ético/estético com outro mundo possível.
Afinal, já diria Quincas Borba, na origem somos todos feitos da mesma substância.