O tema deste artigo foi-me sugerido pela leitura de uma entrevista feita ao autor colombiano Héctor Faciolince, saída no diário Público, onde este relata a sua terrível experiência quando há alguns dias um míssil russo caiu na pizzaria em Kramatorsk, no Leste da Ucrânia, onde se encontrava. A explosão provocou 13 mortos, entre eles a escritora ucraniana Victoria Amelina, com quem estava a almoçar: «de repente estávamos no inferno», relata, ainda perturbado e a recuperar dos ferimentos. Lembra, aliás, que o ataque não foi um «dano colateral» da guerra, mas uma escolha deliberada e cirúrgica, associada ao facto do Ria Lounge ser «o restaurante onde todos os correspondentes de guerra na Ucrânia vão quando estão na cidade».
Segui depois, recorrendo a páginas de informação credível, o percurso pessoal de Amelina, bem como o de muitos escritores, intelectuais e jornalistas ucranianos e de todo o mundo que, sem qualquer vínculo ao governo de Kiev, se têm disposto a testemunhar no terreno – muitas vezes com o risco da própria vida – a devastação perpetrada pelo exército invasor russo, a resistência heroica de milhões de ucranianos, e, acima de tudo, o sofrimento sem fim da larguíssima maioria da população. Não apenas afetada direta ou indiretamente pela invasão e pelos combates, mas vendo também hipotecado, por décadas de reconstrução e inevitável trauma, um futuro de tranquilidade e bem-estar.
Penso nessas pessoas e indigno-me, como se indigna a maioria das pessoas que conheço, perante o despudor de Putin, mas sobretudo o dos seus apoiantes e aliados em todo o mundo que se atrevem a qualificar grande parte dos cidadãos ucranianos como «neonazis». Começo por dar por garantido que quem o faz sabe o que significa o epíteto «neonazi», ainda que dele possa ter uma perceção alargada, sempre aplicado a alguém que defende o regresso aos princípios e práticas do nazismo alemão ou de outros fascismos equiparáveis, que entende existir uma desigualdade natural entre grupos étnicos, que se propõe destruir a democracia, e ainda, daí o uso do prefixo «neo», que o faz num processo de adaptação ao nosso tempo. O que terá então a larguíssima maioria do povo ucraniano a ver com esta gente?
A história lembra que, durante a Segunda Guerra Mundial, existiu de facto um apoio de ucranianos aos avanços das tropas de Hitler, tomadas como «libertadoras» após anos de opressão e morticínio impostos por Estaline. Cedo, porém, a maioria percebeu que tinha passado de uma tirania para outra. Ao mesmo tempo, quem está a par da realidade ucraniana deve saber que nas últimas eleições os partidos de extrema-direita somados reuniram apenas 1,9% dos votos. Além disso, quem invoca como «prova» do «neonazismo» do governo de Kiev – como todos os governos democraticamente eleitos, jamais isento de erros, contradições e más escolhas – a proibição de certos partidos políticos, deve ater-se a que estes estavam a funcionar como agentes internos do invasor. Por último, jamais deve esquecer-se que a extrema-direita europeia tem sustentado Putin, por sua vez militarmente apoiado por fascistas russos.
Quem ultraja boa parte dos ucranianos, classificando-os como «neonazis» para justificar as suas desastradas escolhas políticas, traduzidas numa aceitação da invasão russa ou, pelo menos, de uma oposição ao rearmamento ucraniano por parte dos países ocidentais – o que, se contrariado, traduziria uma «paz podre» e uma aceitação da conquista russa – deveria esforçar-se por aprender alguma coisa com uma análise objetiva e justa da realidade. Bem sabemos que algumas dessas pessoas determinam a sua opção pela nostalgia da antiga União Soviética, que ingenuamente julgam em parte reencarnada nas ações de Putin, mas o tempo não anda para trás.