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10-05-2023        As Beiras

É sabido que, devido a um complexo conjunto de causas, entre as quais está também a ideia peregrina de que as cidades não se planeiam, está instalado em Portugal um grave problema habitacional, a que alguns, não despropositadamente, chamam crise. Importa aqui falar de uma das causas desse problema, a excessiva regulamentação. Não se constroem mais habitações porque a aprovação é morosa e desmotivadora.

Em 2006, os sociólogos Manuel Villaverde Cabral, na coordenação, e Vera Borges, publicaram um relatório sobre o exercício da profissão de arquitecto/a em Portugal. Esse documento representa, ainda hoje, o melhor barómetro da prática arquitectónica neste país. É muito claro, substancial, rigoroso e exaustivo. Entre muitas outras circunstâncias da prática arquitectónica, refere como problemas mais importantes da profissão em geral: - Burocracia da Administração Pública e - Legislação Contraditória/Desactualizada; Quando se juntam estes dois problemas, o relatório assevera que mais de 50% dos arquitectos se queixam de uma e de outra coisa (…) e remata afirmando que, ao pé destes, todos os problemas identificados são menores. O mesmo documento refere ainda que, se estivesse toda compilada, a regulamentação pela qual se rege a prática profissional corresponderia a um volume com cerca de 400 páginas. Mas, de entre essas 400 páginas, cerca de 60%, 240 páginas portanto, contêm contradições no confronto com outra regulamentação. Enfim, um absurdo labirinto normativo que hoje, 17 anos volvidos sobre o relatório, está longe de ser resolvido, se não tiver até sido agravado.

As contradições são muito evidentes, todos/as os/as profissionais se queixam delas. As de segurança de equipamentos são incompatíveis com as normas térmicas, em geral, o que para algumas armações normativas é obrigatório, para outras é interdito. O principal responsável por este emaranhado continua a ser, porém, o Regulamento Geral das Edificações Urbanas, o célebre RGEU. Já com cerca de 70 anos, o RGEU tem vindo a ser sendo sucessivamente enxertado com os temas da moda, a sustentabilidade, a atenção para com as pessoas com dificuldades motoras e/ou sensoriais, etc. Fica com algumas cepas rejuvenescidas, mas a maior parte dos ramos e das folhas continua completamente desactualizada. Por exemplo, na questão habitacional, é total e exclusivamente virado para a família nuclear de meados do século passado que habitava a casa burguesa, compartimentada ainda à maneira aristocrática do século XIX.

A ajudar à festa, acresce ainda a normativa urbanística municipal, obsoleta, quase toda construída em meados da década de 1980, quando a especulação fundiária era um problema grave, 90% dos projectos não eram feitos por verdadeiros profissionais e o espantalho higienista continuava ainda a ser útil nalgumas áreas centrais das nossas cidades. Hoje, as cidades estão vazias de habitantes, algumas estão mesmo vazias de pessoas, e nós continuamos a ter muito cuidadinho com a densidade. Em cidades como Coimbra, por exemplo, onde uma parte substancial da urbanidade era conseguida pela volumosa escala edificada, na Baixa, na Alta, nas extensões de finais do Século XIX e princípios do século XX, hoje não se constrói nada com mais de três pisos, o térreo incluído.

A cidade contemporânea confunde-se com os subúrbios do século passado. Ruem edifícios devolutos, essenciais para a compreensão da memória colectiva da escala urbana, e raramente são substituídos por outros, unicamente por ignorância, por pudor patrimonial, por receio da nova construção não corresponder ao passado, não percebendo que a norma devia ser exactamente o contrário, a sua substituição imediata por um edifício com a mesma escala de representatividade urbana.

Enfim, hoje em dia tudo mudou, excepto a normativa. Continua bem aperreada na sua obsolescência kafkiana. O labirinto, cada vez mais absurdo, continua a ensombrar a prática profissional, faz-se assim não porque seja útil, ou seguro, ou culturalmente adequado, mas porque a norma manda. Um emaranhado regulamentar, sem princípios constituintes. Agora, neste momento histórico, é necessário, é urgente construir mais. Mais habitação, urbana e aberta às diversificadas exigências das novas gerações, e todas as infraestruturas necessárias a essa produção habitacional.

Ora, perante este cenário, o que propõe o governo? Que os municípios eliminem o licenciamento, responsabilizando posteriormente os/as arquitectos/as pelo eventual incumprimento das normas, nos projectos que inscrevem nos serviços municipais... Era o que mais faltava! Perante este absurdo normativo, quem o criou que o desmonte, que tenha a decência mínima de o atirar para o lixo e construir outro, inteiramente novo, mais adequado à condição contemporânea. E então sim, com certeza que os/as arquitectos/as estarão disponíveis para colaborar nessa tarefa hercúlea, mas absolutamente necessária. 


 
 
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José António Bandeirinha



 
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