A propósito das recentes notícias envolvendo o Centro de Estudos Sociais e o professor Boaventura de Sousa Santos pode ser oportuno uma reflexão mais ampla sobre as lógicas de poder e as corrosões internas que hoje atravessam muitas instituições portuguesas, a começar pelo ensino superior. Começo por salientar o imenso património de conhecimento académico acumulado no CES ao longo de quatro décadas, inclusive nas áreas temáticas que estão em causa, como sejam as questões de género, a democracia participativa, o preconceito racial e homofóbico e também os problemas do assédio e do abuso de poder.
Tais matérias, agora em discussão pública, exigem cuidado e precisão conceptual. Cuidado, para evitar que se entre num “lavar de roupa suja” em que todos saiam manchados ou que se façam julgamentos na praça pública. E precisão, para evitar que os alegados “abusos” e acusações de “assédio” se confundam com atos de violação, uma confusão que tanto agrada à comunicação social tabloide. Quando este caso é tratado em paralelo com a violência sexual e a pedofilia na Igreja, é disso que se trata: uma tentativa de “assassínio de caráter” contrária ao apuramento sereno da verdade.
O CES é o que é na sua imensa diversidade temática, correntes teóricas e opções epistemológicas, muitas das quais são ou foram ofuscadas devido à profícua produção teórica e visibilidade pública do seu fundador. A marca Boaventura colada ao CES é inevitável e não duvido de que essa marca irá perdurar, pela positiva, dado o inquestionável impacto que tem a nível global. Importa que a instituição saiba reinventar-se sem desbaratar esse legado. A reflexão que proponho neste texto visa, não o CES nem a sua principal figura, mas, inspirado nesse caso, abordar o jogo de poderes e os abusos que permeiam as nossas instituições em geral, a começar pelo ensino superior (temas que tratei muito antes das atuais denúncias, por exemplo em “A ‘catedral’ e o catedrático”, 18/1/2022). As questões do “assédio sexual” ou “assédio moral” são fenómenos indissociáveis do exercício do poder.
Recorde-se o conceito de "poder" como o definiu Max Weber: "O poder é uma relação social entre dois ou mais atores sociais em que um deles está em condições de alterar o comportamento dos outros, independentemente da vontade destes" (citando de memória). Sendo uma relação assimétrica (e não um recurso material substantivo), o exercício do poder, mesmo quando pensado na sua variante mais simples (a relação entre duas pessoas), nunca reside apenas num dos lados. Quem está “por cima” alimenta-se do modo como agem os que estão “por baixo”. Tal processo pode, portanto, assumir contornos de anuência e aceitação ou assentar em ações de constrangimento, coerção e ameaça. A possibilidade de uso da força ou de ação retaliatória tem, regra geral, um efeito dissuasor, e isto aplica-se tanto a um regime político, ao nível do Estado e da sociedade, como a um microcosmo mais restrito, como é o caso de um ambiente fabril ou estrutura organizacional, qualquer que ela seja.
É claro que aqui entra o elemento decisivo da fabricação do consentimento, que visa tornar aceitável e perpetuar a relação de poder, mesmo quando ele é fortemente opressivo. Como na conhecida expressão do antigo ativista anti-apartheid Steve Biko: “A maior arma do opressor é a mente do oprimido.”
Vale a pena ainda lembrar um outro teórico do poder, Michel Foucault, para referir que numa sociedade vigiada – sobretudo em instituições carcerárias onde vigora o sistema pan-ótico – a ductilidade do poder exprime-se pela ostentação (punição exemplar) e pela ação de docililização (através da colonização da mente do oprimido). Em todo o caso, trata-se de um processo dinâmico em que vertente paternal/tutelar tende a reverter-se em ação violenta e punitiva sempre que a atitude do elo mais fraco passe de submissão passiva a resistência ativa.
Assim, as práticas de assédio, sendo embora repulsivas e hoje (felizmente) criminalizadas, não se resumem aos avanços ilícitos de quem usa a posição de poder, podendo envolver um jogo de poderes tácitos mais complexo, em que os rituais de sedução podem partir do lado mais frágil, visando o seu empoderamento. Afinal, estar próximo do mais poderoso confere créditos de poder, e se o mais poderoso é um autocrata, os/as seus/suas bajuladores/as ganham influência e poder.
O que aqui importa sublinhar é que na relação de poder existem pelo menos duas partes, onde o papel do elo mais fraco é igualmente importante, quer quando é silenciado quer quando resiste, quer ainda quando recorre à dissimulação, fingindo aceitar o desequilíbrio instituído, mas na verdade procurando subvertê-lo em benefício próprio. Quando publiquei em 2016 um texto de opinião neste jornal intitulado "Os lambe-cus" (26/10/2016), referia-me aos inúmeros aduladores e bajuladores dos poderosos que em Portugal estão disseminados nos mais diversos setores e instituições. Numa sociedade como a portuguesa, onde o paroquialismo e o patriarcado estão profundamente enraizados, é tão importante denunciar a existência de abusos de poder – e de assédio moral ou sexual – como a bajulação e veneração dedicada aos poderosos.
O chefe autocrata esconde-se muitas vezes na pele do messias e, quando se trata de um líder carismático, a roupagem messiânica e salvífica esconde a sua natureza violenta ou criminosa, como nos fundamentalismos religiosos, nos movimentos extremistas e nos regimes tirânicos. Daí decorre a “sacralização” do chefe, o culto da personalidade e com isso o manto de invisibilidade pelo silenciamento do que se passa nos bastidores. Como mostraram os grandes teóricos da psicologia de massas desde o século XIX, o fanatismo das multidões projeta-se na figura do líder ou “guia espiritual”, como em algumas seitas religiosas ou no populismo de extrema-direita. Quando a lógica do coletivo induz a adesão total dos crentes, o espaço da racionalidade individual é anulado em favor da emulação do líder e, consequentemente, traduz-se na excomunhão de qualquer divergência individual.
Por exemplo, o legado do movimento #MeToo, sem descurar a importância do seu contributo na punição de muitos abusos, pode resvalar para uma lógica persecutória e de “caça às bruxas” ou patrulhamento da linguagem, eivada de fanatismo e dogmatismo.
Sobre assédio sexual, machismo e cultura sexista nas universidades e noutros setores profissionais muito se tem dito e escrito. Mas, em favor da instituição agora sob o fogo da crítica, devo lembrar que nela se tem produzido abundante matéria não só teórica, mas também projetos de intervenção dirigidos ao combate e prevenção de situações de assédio e abuso no seio da academia. Um exemplo disso é o projeto Supera, sediado no CES (que funcionou de 2018 a 2022) e que abrangeu uma rede internacional de universidades, focado numa pedagogia de denúncia e prevenção contra formas discriminatórias e de obstrução do acesso das mulheres aos postos de decisão.
Infelizmente, tais iniciativas debatem-se em geral com a resistência preconceituosa e anacrónica por parte dos órgãos de governo das universidades, que demoraram a perceber e levar a sério alertas deste tipo, ao mesmo tempo que, durante décadas, se perpetuam práticas de assédio e culturas de masculinidade, homofobia e de sexismo entre os/as estudantes, desde logo no âmbito das praxes académicas, perante a complacência ou impotência das autoridades universitárias.
Ao menos que os atuais casos sirvam para consciencializar as instituições e eliminar todas as formas de discriminação, abuso e despotismo.