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05-04-2023        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Qualquer busca bibliográfica revelará que o tema do “futuro da Europa” é muito recorrente, sobretudo depois de 1945. Compreende-se que depois de duas guerras mundiais devastadoras houvesse razões de sobra para questionar o futuro da Europa. A Europa do Tratado de Versalhes de 1919, dominada pela rivalidade continuada entre os Estados nacionais beligerantes, dera lugar à Europa dos blocos rivais – o bloco ocidental e o bloco soviético – sob a égide da potência que então confirmava o seu domínio global, os EUA. Dominados pela lembrança da devastação causada pela guerra, dois temas dominavam a discussão do futuro da Europa, nessa altura reduzida à Europa ocidental: uma organização inter-europeia que não excluísse a Alemanha (ocidental) de modo a que esta deixasse de ser um perigo para outros povos; a autonomia da Europa em relação aos EUA, numa altura em que para a Europa o tempo era já um tempo pós-imperial. O primeiro tema referia-se aos modelos de organização, sendo que a questão central era a da partilha e livre circulação dos recursos naturais. Assim surgiu o Tratado de Paris de 1951 que criou a Comunidade do Carvão e do Aço. Decidiu-se também a divisão da Alemanha, a proibição de esta aceder a armas nucleares e a ocupação militar da Alemanha Ocidental por parte dos EUA. O segundo tema centrava-se em duas posições opostas. Por um lado, a posição da França liderada por Charles de Gaulle, para quem a Europa podia aspirar a continuar a ser uma potência global, para o que era necessário manter autonomia em relação aos EUA. Por outro lado, a posição destes, para quem a Europa, agora reduzida à Europa Ocidental, teria de ligar-se aos EUA e constituir com estes a Comunidade Atlântica, uma posição defendida num texto influente de Walter Lippmann em 1944.

Desde então, quatro momentos foram particularmente intensos na discussão a respeito do futuro da Europa: o fim do bloco soviético/fim da guerra fria, a destruição da Jugoslávia, o Brexit, a pandemia e, por último, a guerra da Ucrânia. O mais curioso desta discussão é que ela se centrou sempre sobre o futuro da Europa e nunca sobre o seu passado. No caso da Europa que foi socialista e soviética até 1991, o passado discutido depois dessa data foi o passado da anexação soviética, e a discussão está longe de ter terminado. É o caso da questão da Mitteleuropa, um conceito que significa tanto Europa central (que, aliás, depois de 1945, passou a ser Europa oriental), como Europa de forte influência alemã. Como afirmou Milan Kundera, o problema da Mitteleuropa era estar geograficamente no centro, culturalmente no ocidente e politicamente no oriente.

A discussão do passado deveria ser particularmente importante para a Europa ocidental, capitalista, uma vez que a constituem todos os países que estiveram envolvidos na expansão colonial europeia, desde os primeiros (Portugal e Espanha) até aos últimos (Bélgica, Alemanha e Itália). E seria importante para o conjunto da Europa, sobretudo se tivermos em mente que o colonialismo moderno depois do século XV teve fortes antecedentes no colonialismo que existiu dentro da Europa nos séculos anteriores. Se por colonialismo entendermos uma economia política fortemente injusta e violenta imposta a povos/raças/etnias considerados ontologicamente inferiores, a história do colonialismo interno na Europa é muito longa, e essa longa duração condiciona mais do que se pode imaginar qualquer especulação quanto ao futuro da Europa.

Ao longo da história, os eslavos foram considerados pelos seus inimigos como raças inferiores. As palavras “escravo” e “eslavo” têm a mesma etimologia (Lat. sclavus). Eslavos são os povos europeus, da Rússia aos Balcãs, que ao longo da Idade Média foram frequentemente submetidos à escravatura. São disso exemplo, a partir do século XIII, os escravos eslavos que trabalhavam nas plantações de açúcar de Chipre, e que eram propriedade de comerciantes de Veneza. A eslavofobia atingiu o paroxismo com o Nazismo e serviu de justificação para a expansão alemã para leste, da Polónia à Ucrânia e à Rússia. Paralelamente, toda a Europa do sul, desde o ocidente (Portugal e Espanha) até ao oriente (Balcãs e Grécia) foi ao longo de séculos considerada pela Europa central como sendo ocupada por raças inferiores (“brancos escuros”) e, no caso dos Balcãs, não só por raças inferiores (os eslavos do sul) mas também por religiões inferiores (o Islão).
As razões da ignorância

A ignorância desta história sempre conveio aos países e classes que dominaram a Europa até hoje. Por muitas razões. Primeiro, quando deixou de ser legítimo falar de raças inferiores, usaram-se outros argumentos para criticar e punir os comportamentos de povos antes racializados, mas a dureza e até brutalidade dos argumentos mal disfarçou os preconceitos racistas. A mais recente expressão disso foram o discurso e a prática da Alemanha sobre a crise financeira da Grécia, Portugal e Espanha em 2011. A segunda razão para a conveniente ignorância de história é dar credibilidade ao que se convencionou chamar depois de 1945 “os valores europeus”: o Cristianismo e o Iluminismo. Não só se esquece que a religião islâmica esteve presente na Europa durante oito séculos (El-Andalus) e continua hoje presente em múltiplas comunidades europeias, sejam elas de imigrantes ou de cidadãos. Segundo, esquece-se que ligar os valores do Iluminismo à Grécia antiga e aos países que herdaram esses valores (a Renascença italiana) significa ocultar o papel da escravatura e do colonialismo na construção das sociedades que viriam a reivindicar os valores iluministas (mesmo na própria Grécia). Em terceiro lugar, a ignorância é conveniente para ocultar a diversidade etnocultural, histórica e social que desde sempre caracterizou os povos europeus. Hoje, quando se reconhece essa diversidade, é para contrapor os povos europeus (supostamente homogéneos) aos imigrantes e descendentes dos países que foram colonizados pela Europa. Trata-se de um reconhecimento da diversidade que visa justificar a superioridade da homogeneidade a que se contrapõe. Finalmente, a ignorância da história visa desvalorizar as dificuldades e recorrentes frustrações na construção da chamada identidade europeia. É evidente que nos últimos cinquenta anos muito se fez para fomentar essa identidade (o programa Erasmus está hoje no coração de muitos milhares de jovens europeus), mas a persistência das identidades nacionais que dominaram o século XIX e boa parte do século XX continuam hoje a sobrepor-se a qualquer ideia de identidade supra-nacional promovida pelas elites auto-denominadas cosmopolitas da UE e do Parlamento Europeu. Ninguém hoje daria a vida pela Europa, mas muitos a dariam pelo seu país, à semelhança do que estão a fazer os ucranianos. As forças políticas de extrema-direita são as que melhor têm explorado esta tensão identitária, e esta tenderá a agravar-se na medida que as elites europeias reivindiquem a identidade europeia para justificar políticas que empobrecem os europeus (alimentar guerras) ou, mais grave ainda, para transformar a identidade europeia numa subespécie da identidade norte-americana, como é o caso actualmente.

Se o passado europeu se conhecesse com alguma objectividade, o futuro da Europa não seria aquele que neste momento se perfila e que nada de bom augura para os europeus. Para o entender, temos de recuar algumas décadas. Um dos mais eruditos e mais conservadores analistas das relações internacionais do pós-guerra, Zbigniew Brzezinski, conselheiro de segurança do Presidente Jimmy Carter dos EUA, escrevia em 1997 (The Grand Chessboard) que a “Europa” era um conceito, um objectivo, uma visão, mas não uma realidade. Duvidava que a Europa viesse algum dia a ser uma entidade política e concluía que a Europa ocidental e crescentemente a Europa central eram protectorados americanos, sendo os seus Estados reminiscentes dos antigos Estados vassalos ou tributários no seio dos impérios. Qualquer projecto político na Europa teria de ocorrer no seio da segurança geoestratégica dos EUA e por isso a ampliação da Europa teria de ser concomitante com a expansão da NATO.
Tudo o que se passou desde então confirma esta leitura. Se durante a guerra fria uma Europa dividida (sobretudo estando dividido o seu motor económico, a Alemanha) não poderia ser um concorrente dos EUA na economia ou na política globais, já o mesmo não se poderia dizer de uma Europa unida. Da perspectiva norte-americana, a incerteza que pudesse resultar da unificação da Europa só poderia ser controlada pela continuidade da tutela política e militar dos EUA através da NATO. Qualquer solução que envolvesse o fim da NATO era inaceitável para os EUA. Como a NATO se tornara anacrónica com o fim da guerra fria, era necessário renovar o seu mandato inventando ou fomentando novos inimigos ou reciclando velhos inimigos. Foi por isso que a Rússia de Gorbatchov e mesmo de Putin (quando este chegou ao poder), quando quis entrar para a NATO, foi de imediato descartada. Tal como foi descartada a alternativa oferecida pela Rússia, que os países mais próximos da sua fronteira, nomeadamente a Ucrânia, não entrassem para a NATO. Pelo contrário, era urgente inventar ou fomentar inimigos. O primeiro foi a Jugoslávia na década de 1990; o segundo foi a invasão da Ucrânia pela Rússia.

Neste momento, a Europa é, mais do que Brzezinski previa (ou mesmo desejava), um protectorado dos EUA. Se analisarmos os discursos e práticas da maioria dos seus líderes políticos, qualquer que seja a sua ideologia política, são discursos e práticas típicas de Estados vassalos. Ernest Mandel defendia que uma das características do capitalismo tardio é assentar fortemente no capitalismo dos armamentos. Aí está perante nós. E aparentemente a supremacia militar não bastou. A sabotagem dos gasodutos Nord Stream serviu os interesses geoestratégicos dos EUA porque atingiu directamente o motor da economia europeia, a Alemanha, privando-a do acesso a energia barata e tornando-a dependente, por algum tempo pelo menos, de energia produzida ou controlada pelos EUA.

Se a Europa examinasse a história das injustiças que cometeu no passado (e continua a cometer), tanto no interior do continente como nas colónias e ex-colónias, certamente assumiria que o seu futuro devia consistir em saldar essa dívida histórica. Daí resultariam algumas orientações. A primeira, defender o povo ucraniano, procurando a paz a todo o custo, e nunca alimentando a guerra. A segunda, não se auto-amputar da Rússia, que é parte da história e da cultura europeias. A terceira, ter presente que a guerra dos EUA contra a Rússia visa destruir o bloco sino-russo euroasiático, identificado por Brzezinski como alvo a abater. Esta última visa, em última instância, confinar a China à Ásia e impedir que esta retalie contra os EUA, impedindo o acesso destes à Ásia. Os países que a Europa colonizou têm evitado posicionar-se incondicionalmente a favor de um ou de outro rival. Esta seria a única posição da Europa consonante com a sua responsabilidade histórica, a não cooperação activa, quer com o imperialismo declinante dos EUA, quer com o imperialismo ascendente da China. Uma Europa desprovida de saudosismo imperialista que nem sequer de muleta fiável serve aos EUA – veja-se o caso dos submarinos nucleares a comprar pela Austrália – seria a posição que melhor serviria a paz no mundo.
     


 
 
pessoas
Boaventura de Sousa Santos



 
temas
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