Mesmo fora do campo de trevas, hoje maioritário à escala planetária, das ditaduras ou das «democracias musculadas», vivemos tempos difíceis para a liberdade de opinião. Não se trata de um problema novo, pois ela sempre incomodou aqueles que procuram impor aos demais as suas razões e a sua vontade, mas hoje tem novos contornos. O que nesta altura distingue as atuais das situações do passado de assalto à liberdade é esta ser frequentes vezes atacada ou diminuída por quem tem o dever de a utilizar e de a defender. É o que acontece com muitas das pessoas a quem as redes sociais conferiram uma voz que até há poucos anos jamais sonharam deter, utilizando esta possibilidade, não para divulgar informação fidedigna, além de opiniões sinceras e justificadas, assumindo a diversidade e aceitando o contraditório, mas para disseminar a mentira, a ignorância e o ódio.
Numa outra dimensão, o mesmo sucede com a subserviência e a ausência de coragem que se encontram quotidianamente em notícias, opiniões e outras formas de intervenção surgidas todos os dias nos meios profissionais da comunicação social, ou com temas da maior importância que neles são distorcidos e simplificados, quando não esquecidos e completamente silenciados. Com tantos jornalistas, mais papistas do que o papa – embora, sem dúvida, existam muitos honestos, corajosos e de grande qualidade –, a aplicarem estes processos, ou mesmo a autocensurarem-se, em vez de assumirem, com nobreza e determinação, aquilo que a consciência e a deontologia lhes ditam, e o que verdadeiramente importa para cumprirem a sua missão social.
A este propósito, regresso a dois parágrafos exemplares escritos pelo grande jornalista e enorme poeta Manuel António Pina, publicados em Outubro de 2011, a um ano do seu desaparecimento, no suplemento Notícias Magazine do JN, como parte de uma curta crónica concebida em registo de memória pessoal. A citação é longa, mas merece a pena:
«Jovem repórter, fui uma vez enviado a Aveiro para cobrir o II Congresso da Oposição Democrática. Todos os dias escrevia dois ou três linguados e todos os dias a Censura reduzia a reportagem a duas ou três linhas. Ora aconteceu passar no Cine Teatro Aveirense (o Congresso decorria no Avenida) um filme que não queria perder, La bête humaine, de Jean Renoir. Decidi – pois, de qualquer modo, a Censura cortaria o mais que escrevesse – dizer do que, naquele dia, se passara no Congresso pouco mais que quem interviera e sobre o quê, e fui ver Renoir. Manuel Ramos, chefe de Redação, ficou furioso. “Mas é a única coisa que a Censura deixa sair…”, tentei justificar-me. E a lição de Manuel Ramos: “A Censura que corte, é o seu papel. O nosso é escrever tudo, independentemente de haver ou não Censura”.
Contra todas as expectativas, acabou por ser um dia feliz, vi La bête humaine e aprendi algo fundamental sobre a minha profissão: podemos ser forçados a calar-nos, mas é inaceitável que nos conformemos e nos calemos por nossa iniciativa.»
É verdade que, graças à democracia, entre nós a pouco mais de um ano de perfazer meio século, não existe hoje censura formal, e ninguém pode ser preso ou multado por, ainda que a ninguém ofenda, dizer o que alguém não quer que seja dito. Ocorrem aqui, porém, três formas insidiosas de tolher a liberdade impostas pelos mecanismos do medo. A primeira, refere-se ao de incomodar ou de contestar protagonistas e formas do pensamento dominante; a segunda, ao de ir contra a corrente em termos da opinião pública tomada como maioritária; e a terceira, ao receio de divergir dos interesses pessoais ou de grupo de quem dirige ou administra a publicação. Em qualquer dos casos, ceder ao medo enfraquece a liberdade. Por isso, para quem ela realmente importe, é preciso escrever ou falar sem temer, como um dever.